Angela de la Cruz, a partir de hoje na Culturgest

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A obra "Clutter Wardrobes", de 2004 DR

Composta por 37 trabalhos de 1995 a 2005, a mostra ocupa toda a galeria de exposições da Culturgest. "Desvenda o trabalho de uma artista que, nos últimos dez anos, se distinguiu por uma linguagem extraordinariamente vigorosa", diz Wandschneider, para quem uma das maiores inovações de De la Cruz reside no facto de a artista trabalhar "as possibilidades de representação e significação no interior de um regime formal abstracto" e monocromático herdado do minimalismo.

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Composta por 37 trabalhos de 1995 a 2005, a mostra ocupa toda a galeria de exposições da Culturgest. "Desvenda o trabalho de uma artista que, nos últimos dez anos, se distinguiu por uma linguagem extraordinariamente vigorosa", diz Wandschneider, para quem uma das maiores inovações de De la Cruz reside no facto de a artista trabalhar "as possibilidades de representação e significação no interior de um regime formal abstracto" e monocromático herdado do minimalismo.

Em 1961, o artista norte-americano de origem sueca Claes Oldenburg descreveu o tipo de trabalho que desejava desenvolver: "Sou por uma arte que tira a sua forma da própria vida, que se contorce e dilata e acumula e cospe e pinga. Sou por uma arte que se veste e despe, que ganha buracos, que é comida ou abandonada. Sou por uma arte coberta de ligaduras, que coxeia e rebola e corre e salta."

Mais de vinte anos depois, o crítico de arte contemporânea inglês David Barrett recupera estas afirmações para uma aproximação à obra da espanhola Angela de la Cruz.

Como muitos outros artistas desde os anos 60, De la Cruz "utiliza estratégias formais que sublinham a objectualidade da pintura" e desenvolve práticas de desconstrução desta forma de expressão, mas fá-lo usando "um léxico abstracto herdado do modernismo" e "para explorar um campo de representação figurativa metaforicamente ligado ao mundo real": é o que garante à sua obra "uma posição única na produção artística contemporânea", diz Wandschneider.

David Barrett, convidado a escrever um texto para o catálogo, destaca "a criação de crioulo a partir das duas linguagens da escultura e da pintura, uma nova linguagem que não é uma nem outra, mas um modo inteiramente novo de produzir sentido".

Pintura: o patinho feio

A própria artista, que por motivos pessoais não está em Lisboa, já o explicou: "Cheguei a um ponto, na escola de arte, em que não conseguia pintar. Pintava a mesma pintura vezes sem conta. Um dia, simplesmente, parti a pintura. Não por raiva, mas por tristeza."

Foi em 1995. A pintura, um monocromo branco-sujo, de tinta empastada e gasta nos cantos, transformou-se em Ashamed, a mais antiga obra exposta na Culturgest.

Depois de uma renovada euforia em volta da pintura nos anos 80, em meados da década de 90, quando De la Cruz estava a terminar o seu Master na Slade School of Art, voltava a falar-se do esgotamento desta linguagem, quando não da sua morte. "A pintura era considerada como o "patinho feio" [das artes]. Olhando para trás, [vejo que] todos esses sentimentos de desconforto em certa medida determinaram o trabalho que [eu] iria fazer", explica no catálogo da exposição. "O que inicialmente me motivou foi o desejo de que a pintura se tornasse específica de um modo diferente."

Ashamed, com as suas dimensões reduzidas e com um canto da moldura de madeira partido, a deixar a tela a pender sobre si mesma, remete para a ideia de uma pintura envergonhada da sua própria condição. Foi o trabalho que a artista apresentou na exposição de finalistas da Slade. Foi também a primeira de toda uma série de obras com o título genérico de Everyday Paintings (pinturas quotidianas).

Homeless (1996), também incluída na exposição, foi a etapa seguinte de uma pesquisa em que De la Cruz passaria a assumir desassombradamente a tridimensionalidade das suas obras, percebendo "que podia utilizar qualquer parte do espaço para lidar com todas as coisas que não conseguia realizar no interior da pintura".

De muito maior formato que Ashamed, Homeless, uma peca de canto, que desce da parede para se apoiar sobre o chão, é também o primeiro trabalho em que desdramatiza o acto de partir a armação de madeira - "um esqueleto com 500 anos de história" sem o qual "a pintura pode deslocar-se livremente pelo espaço".

É, como diz Wandschneider, o começo "da transmutação da pintura em objecto", uma via que, dentro da sua obra, persiste até hoje: "A deslocalização da obra relativamente à parede foi um passo crucial para a definição de uma linguagem que, mantendo uma relação privilegiada com a pintura, se vai situar decididamente entre esta e a escultura."

Mas Ashamed e Homeless abririam portas à chegada de outros aspectos fundamentais da obra da artista: por um lado, o humor, por outro uma antropomorfização dos trabalhos decorrente de narrativas introduzidas por títulos que falam de experiências e sentimentos humanos ligados a um quotidiano cheio de percalços.

Obras em que uma tela espezinha outra (Bully, 1997), em que se fala de uma queda aparatosa (Falling on Your Butt, 1997) ou de ser surpreendido sem calças (Off Guard, 1998) entram na lógica das Everyday Paintings, que, usando os materiais tradicionais da pintura - a tela e as tintas (primeiro óleos, depois acrílicos) - acabaria por desembocar em novas séries. Como as Commodity Paintings (pinturas mercadoria), em que De la Cruz começa a questionar a natureza mercantil da arte.

A partir de 2001 começa também a reutilizar, recompor e vender velhas telas acumuladas no atelier, sendo um dos primeiros destes trabalhos o programático Full (Recicled), de 2002. Mais recentemente, a sua pesquisa levou a artista para um plano mais próximo da escultura.

De la Cruz, diz David Barrett, "desmantela o pensamento que emparedou a pintura durante décadas e reconstrói-o em termos mais adequados às suas necessidades". Mas, para Barrett, mais importante do que o que o trabalho da artista possa dizer é "o modo que tem de o dizer": "O crioulo que desenvolveu a partir das linguagens gémeas da pintura e da escultura faz com que as suas obras, embora se enquadrem em tradições complexas e há muito vigentes, nunca se deixem capturar por elas." Barrett conclui: "Talvez não seja outro o trabalho que todos os pintores devem enfrentar."