Quatro ideias por minuto
Depois de "Esther Kahn" houve um filme que não vimos e não passou por cá, "Léo, en Jouant Dans La Compagnie des Hommes", onde Desplechin trabalhava - ainda o teatro - a mesma peça de Edward Bond que Neil Labute adaptou em "In the Company of Men". Quando reencontramos o cinema de Desplechin neste "Reis e Rainha", temos a surpresa de o encontrar emerso num romanesco pícaro e cheio de detalhes (Desplechin fala de "quatro ideias por minuto"), profundamente "escrito", e até "caloroso", mesmo se as temperaturas são variáveis e a amplitude térmica bastante larga.
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Depois de "Esther Kahn" houve um filme que não vimos e não passou por cá, "Léo, en Jouant Dans La Compagnie des Hommes", onde Desplechin trabalhava - ainda o teatro - a mesma peça de Edward Bond que Neil Labute adaptou em "In the Company of Men". Quando reencontramos o cinema de Desplechin neste "Reis e Rainha", temos a surpresa de o encontrar emerso num romanesco pícaro e cheio de detalhes (Desplechin fala de "quatro ideias por minuto"), profundamente "escrito", e até "caloroso", mesmo se as temperaturas são variáveis e a amplitude térmica bastante larga.
Resumidamente, o filme centra-se em duas personagens, Nora (Emmanuelle Devos) e Ismael (Mathieu Amalric) que se cruzaram no passado (tiveram uma relação afectiva) e depois se perderam de vista. Agora cada um tem os seus problemas. Nora tem o pai (o monumental Maurice Garrel) a morrer, e procura um pai substituto para o filho, Elias - o verdadeiro pai morreu quando ela estava grávida e ela não se sente em condições de ser a mãe que Elias precisa. Lembra-se então de Ismael, a quem deseja entregar o filho para que ele o adopte. Só que Ismael está metido nos seus próprios palpos de aranha: tem, literalmente, que provar que não é louco, depois de ter sido internado num manicómio "por solicitação de terceiros", isto é, contra a sua vontade ou autorização.
O reino destes "Reis e Rainha" começa por ser o da montagem paralela. Desplechin, que diz que isto é como se fosse entrelaçamento dos dois filmes das personagens, segue um e outro nas suas aventuras e desventuras, numa narrativa sempre "cheia" e enérgica, balançando entre géneros e registos diferentes. Há o burlesco e o "gag", sobretudo a cargo de Amalric, sozinho num manicómio com os seus fantasmas. Mas como "Reis e Rainha" é uma espécie de montanha-russa, desafia constantemente as leis da gravidade, sobe e desce, ora é pesado ora é leve.
Emmanuelle Devos, que se calhar tem aqui o papel da sua vida, está no centro de três momentos melodramaticamente fortíssimos: o encontro, onírico mas filmado como se não fosse, com o falecido pai do seu filho; o longo "flashback" por "kafkianos" corredores burococráticos, quando ela tenta provar que o pai da criança não é "incógnito" (simplesmente "não existe", morreu), e perto do fim a leitura da carta deixada pelo pai (dela) depois de morrer, que é como aqueles momentos dos romances em que um "segredo terrível" é revelado. Pontuado por imagens e referências literárias à antiguidade clássica e às suas idealizações, "Reis e Rainha" acaba, "todo em doçura", com um belíssimo e simplíssimo "epílogo" onde, como nos diálogos dos velhos gregos e dos velhos romanos, um "mestre" prepara o seu "discípulo" para o mundo. É um belíssimo filme, sempre a trabalhar em "camadas", delirantemente inventivo, capaz de conciliar a maior familiaridade com a maior estranheza (ou respectivas impressões), e onde se sente da parte de Desplechin um gozo pela narrativa e pela efabulação "folhetinesca" que é impossível não partilhar. De Devos já falamos, mas não esqueçamos Amalric, a redescobrir, com a sua cara de sapo simpático, a queda para um "burlesco psicológico" em que está completamente à vontade. E não ignoremos o pequeno papel de Deneuve nem, sobretudo, a estarrecedora presença de Maurice Garrel.