Isabel de Castro (1931-2005): o fim da inocência

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Isabel de Castro DR

Isabel de Castro morreu na casa alentejana para onde se retirara há seis anos - e que escolhera porque tinha escrito na porta Casa do Anjo da Guarda, como contou à revista Pública numa entrevista publicada no Verão de 2004. "Eu sempre estive ligada ao meu anjo-da-guarda, ensinamentos da minha avó materna. Assim, deixei a casa de Lisboa, que tinha sido dos meus pais e onde tinha vivido quase sempre."

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Isabel de Castro morreu na casa alentejana para onde se retirara há seis anos - e que escolhera porque tinha escrito na porta Casa do Anjo da Guarda, como contou à revista Pública numa entrevista publicada no Verão de 2004. "Eu sempre estive ligada ao meu anjo-da-guarda, ensinamentos da minha avó materna. Assim, deixei a casa de Lisboa, que tinha sido dos meus pais e onde tinha vivido quase sempre."

Também saíra, menina e moça, de casa dos pais - a mãe, Raquel Bastos, era cantora lírica e escritora; o pai, José Osório de Castro, era jornalista - rumo a Espanha, onde, durante seis anos, entre 1949 e 1955, foi uma presença regular no cinema espanhol, "uma espécie de vedeta", conta Jorge Silva Melo. "Creio que num ano fez 18 filmes", diz o encenador.

Nascida a 1 de Agosto de 1931, em Lisboa, estreia-se aos 14 anos no teatro e no cinema, debutando num filme musical de Jorge Brum do Canto, Ladrão Precisa-se! (1947). Depois da experiência em Espanha, regressa a Portugal, aos palcos: interpreta Amor de Perdição, com encenação de Ribeirinho, no Teatro da Trindade. Cinema e teatro andam a par, e o seu trabalho, num e noutro, é de uma transversalidade que percorre várias gerações e estilos. Como refere Silva Melo, "no teatro, ela tanto fazia peças com o Vítor Espadinha como coisas mais experimentais com o Teatro da Garagem". No cinema, tanto fez Francisca (1981), de Manoel de Oliveira, como O Destino Marca a Hora (1970), com Tony de Matos, do popularucho Henrique Campos. "Era inocente nas escolhas", diz Silva Melo, acrescentando que "ela tinha, nesses filmes, a mesma qualidade que Alexandra Lencastre tem hoje nas telenovelas". Traduzindo: "Fica-se a olhar para ela." Isabel de Castro, aliás, também trabalhou em televisão, desde telenovelas - a última das quais, Anjo Selvagem, em 2001 - a séries de comédia como Duarte e C.ª , nos anos 80.

Nos palcos, destaca-se o seu trabalho com o Teatro Experimental de Cascais, nos anos 70 - em encenações de Racine ou Brecht, por Carlos Avilez -, e com o Grupo de Teatro Hoje (Teatro da Graça), nos anos 80 e 90, onde foi dirigida por Carlos Fernando (peças de Tennessee Williams, Jean Cocteau, Edward Bond), Rogério de Carvalho (A Voz Humana, de Cocteau), Fernanda Lapa ou José Wallenstein, entre outros. Também trabalhou sob a direcção de Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo no Teatro da Cornucópia, no final dos anos 70, ou, mais recentemente, no Teatro da Garagem, com Carlos J. Pessoa. Em 2002, integrou o elenco da tragédia Castro, de António Ferreira, numa encenação de Ricardo Pais. Em 2004, afirmava à Pública: "Toda a vida esteve implícito eu ser actriz. Eu não soube conviver com a vida, e a fuga foi viver as vidas das personagens."

Figura tutelar em filmes inaugurais

Da sua filmografia, constam mais de 70 títulos. A Cinemateca Portuguesa dedicou-lhe um ciclo em 1990. O realizador João Botelho, que a dirigiu em seis dos seus filmes, de Conversa Acabada (1982) a Tráfico (1998), disse dela: "Parava Lisboa. Se calhar foi a coisa mais bonita inventada pelo cinema português. Nos anos 60, ela esmaga, está ao nível de qualquer beleza do cinema mundial, e é uma beleza portuguesa a sério." Nos anos 80, é uma figura recorrente em vários filmes inaugurais de uma nova geração de cineastas: Uma Pedra no Bolso, de Joaquim Pinto, Três Menos Eu, de João Canijo, O Sangue, de Pedro Costa, ou, já nos anos 90, Xavier, de Manuel Mozos (filme que só viria a concluir recentemente).

"Para mim, havia o facto de ela ter entrado em vários filmes e ter atravessado várias épocas", lembrava ontem Manuel Mozos. "Gostei muito dela n"O Sangue e em Uma Pedra no Bolso, e o facto de a ver disponível para pessoas mais próximas de mim fez-me convidá-la para Xavier." Procurando explicar o fascínio que Isabel de Castro produziu sobre esta nova geração de cineastas, Jorge Silva Melo associa-o ao efeito que Brandos Costumes (1975), filme de Alberto Seixas Santos com Isabel de Castro, teve sobre eles. "É um filme que vai marcar muito esses jovens na Escola de Cinema. É Brandos Costumes que leva a Isabel para o cinema "intelectual". Antes, ela só fazia filmes popularuchos." Seixas Santos atesta: "Penso que é o primeiro filme que a Isabel faz fora do circuito comercial."

Filma com António de Macedo, o único realizador que assegura a presença da actriz no chamado Cinema Novo português, com Domingo à Tarde (1966) - Paulo Rocha e Seixas Santos, dois outros nomes fortes dessa geração, só viriam a trabalhar com ela mais tarde ; filma com Solveig Nordlund, Artur Semedo, Manuela Viegas, Margarida Gil, reitera com Oliveira (Vale Abrãao e Viagem ao Princípio do Mundo). A sua última participação no cinema data de 2004, no filme de Teresa Garcia, A Casa Esquecida.

Inês de Medeiros trabalha com ela, enquanto actriz, pela primeira vez, em Sem Sombra de Pecado (1983), de José Fonseca e Costa, reencontra-a em vários outros filmes - os tais filmes inaugurais de uma geração de realizadores - e vai buscá-la sempre para os seus próprios projectos de realização, a curta-metragem Senhor Jerónimo (1998) e O Fato Completo ou À Procura de Alberto (2002). Neste último, é visível o seu fascínio por Isabel de Castro, procurando filmá-la de perto, para além da actriz, para além das suas resistências em ser filmada. "Ela superou tudo o que esperava dela", diz Inês de Medeiros.

Se nunca aqui se falou de carreira é porque, lembra Silva Melo, "ela dizia uma coisa muito engraçada: "Carreiras em Portugal só há a dos autocarros."