Don Quixote o filme que nunca existiu

"Dom Quixote" levanta problemas semelhantes e também umas certas diferenças: filmado por Welles ao longo de catorze anos, deixou como lastro materiais diversificados, sequências em 16 mm e em 35 mm, pedaços sonorizados e outros sem banda sonora e, embora existam notas manuscritas de Welles (em papel, na película, em claquettes), bem como uma versão curta de cerca de uma hora, com narração sua, continua a lidar-se com elementos dispersos, a carecer de uma ordem que não é sempre evidente.

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"Dom Quixote" levanta problemas semelhantes e também umas certas diferenças: filmado por Welles ao longo de catorze anos, deixou como lastro materiais diversificados, sequências em 16 mm e em 35 mm, pedaços sonorizados e outros sem banda sonora e, embora existam notas manuscritas de Welles (em papel, na película, em claquettes), bem como uma versão curta de cerca de uma hora, com narração sua, continua a lidar-se com elementos dispersos, a carecer de uma ordem que não é sempre evidente.

Por isso mesmo, o que vamos, agora, ver em projecção digital - acompanhada em breve por edição em DVD -, não passa de uma proposta de arrumação "integral" dos fragmentos, assumindo as diferenças de qualidade da imagem, as sobreposições da voz narrativa às sequências "mudas" e a possibilidade de que, mesmo conseguindo juntar quase todo o material filmado (faltará uma sequência, na posse do montador italiano Mauro Bonanni, do Quixote a atravessar o cinema com uma lança em riste), se tratará sempre de um filme "incompleto", para o qual o próprio Welles antevia diferentes montagens possíveis.

Como acontece, salvaguardadas as devidas distâncias de suporte, à semelhança de um texto como "O Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa/Bernardo Soares, podem propor-se múltiplas arrumações para os fragmentos deste "Dom Quixote": o que Jess Franco (ou Jesus Franco, responsável por vasta e prolixa obra própria, sobretudo no domínio do "gore" e do terror) faz é optar pelos "takes" melhores, ordenar e dar sentido ao conjunto, com a ajuda da viúva de Welles, Oja Kodar, partindo, inclusive, de excertos que ainda estavam por revelar, algures num laboratório de Munique.

Franco tem a seu favor o facto de ter acompanhado boa parte do projecto, para além de ter colaborado com Welles em "Badaladas da Meia-Noite", mas o resultado "definitivo", se possui caução autoral suficiente para falarmos de um filme do cineasta de "Citizen Kane", também deve encarar-se com o cuidado devido à qualidade fragmentária e fragmentada do objecto. Existe, aliás, também uma montagem de 40 minutos da responsabilidade de Costa-Gavras, mesmo se não revela acesso a toda a película filmada. Poderia, portanto, haver (mais uma vez como acontece com o livro de Pessoa/Soares) tantos "Dom Quixotes" quantos os estudiosos-montadores que sobre eles trabalharem e, por isso, este será sempre o "Dom Quixote" de Welles, "compilado" por Jess Franco.

da mancha para a andaluzia.

Superadas estas questões fundamentais de "edição crítica" de um texto fílmico (o suporte DVD poderia até dar conta de montagens alternativas, para o leitor-espectador poder comparar), como encaixar este objecto polémico na obra de Welles? Pela obsessão investida no projecto e pela visualidade indiscutivelmente wellesiana (com reconhecíveis contrapicados, arrojados grandes planos e movimentos de câmara "assinados" pelo génio wellesiano), trata-se de um elo fundamental para unificar a fase final da sua carreira: prossegue a relação intrínseca com grandes monumentos do património literário universal, de que Shakespeare constitui a vertente fulcral, incorpora o lado documental dos pequenos filmes (pensados para televisão ou apenas aproveitando todas as ocasiões possíveis para criar?) sobre o País Basco ou sobre a corrida em Madrid e distancia-se do referente, actualizando-o com constantes anacronismos, como acontecia no genial "F for Fake". Aposta-se, em ambos os casos, na discussão da modernidade do cinema, na permanente questionação das formas fílmicas, com a liberdade total que rima com a aceitação criativa da escassez de meios.

Primeiro que tudo, no território da "actualização", desloca-se a acção da Mancha (embora o comentário do narrador siga a localização posta no romance e se aproveite o monumento de Madrid para reforçar a cunhagem do mito, acentuando a anacronização da narrativa) para a Andaluzia, num presente de uma Espanha abstracta dos anos 60, com o entrosamento das duas personagens, vindas do passado, a inscrever a ficção de Cervantes num universal tempo sem tempo. Este anacronismo de base aparece sinalizado, logo de início, com a figuração de Orson Welles que filma, remetendo depois para a presença de Sancho Pança, enquanto figurante de um filme, possivelmente "Dom Quixote", marcas do "filme no filme" e modo de aproveitar o máximo dos "takes" rodados, inclusive pedaços de um imaginário "making of", nunca pensado como tal. O que se aproveita do romance são episódios soltos, o que possibilita, é claro, a validação do fragmento, como unidade significativa essencial.

Muito se tem falado da construção das personagens como nas gravuras de Doré, mas o que se passa é mais complexo: sobrepondo o passado como ilustração no presente como acção, obtém-se uma densidade de inter-relações que opera um comentário crítico moderno sem nunca perder de vista o original.

Akim Tamiroff (Sancho) vem directo do mundo de Welles (de "Mr. Arkadin" ou "A Sede do Mal"), enquanto o mexicano Francisco Reiguera, fisicamente conforme ao Quixote, carrega consigo a perturbante marca do universo de Buñuel, de quem foi actor. As sequências em que mais se arrisca uma anacrónica colisão com o conceito restritivo da adaptação - o ataque à vespa conduzida por uma mulher, ou, sobretudo, a inclusão das aventuras quixotescas na reconstituição da Semana Santa - contrastam na perfeição com a imitação fílmica de uma Mancha de moinhos e rebanhos. A ironia desta intervenção no sagrado - a conversão da desgraça em espectáculo - lembra Buñuel, sem nunca forçar o tom sacrílego, refugiado antes na vontade documental contrapontística à ficção de origem.

A sequência da festa permite a inscrição, pela televisão, do franquismo e da conquista espacial na leitura moderna do mito, identificado enquanto tal, de um Quixote sem Dulcineia à vista, lutando contra séculos de injustiça. O programa cumpre-se na beleza implacável de enquadramentos do campo e da cidade, das searas e dos corpos contrastantes dos actores, de sombras e silhuetas. No final a multidão reconhece e aplaude o Quixote como parte do cortejo histórico, a que assiste, e num registo de azulejo aparece a sua memória icónica. O filme que nunca existiu aqui está, belíssimo, para contar esta história para além das fronteiras da História.