Travelogue
Que fazer quando tudo arde(u)? "Diários da Bósnia" é um filme-fluxo, como "Apocalypse Now", mas é o anti- "Apocalypse Now". Coppola filma a guerra como uma explosão, um épico (exaltante, portanto) dos seus efeitos de destruição, Sapinho filma-a como um suspiro, em pequenos gestos. "Apocalypse Now" é uma descida até à morte, "Diários da Bósnia" carrega desde o início o signo da mortandade (não é por acaso que uma das primeiras sequências é a imagem de um cemitério em Sarajevo, com Sapinho-narrador a perguntar-se "como é que estavam as pessoas dois anos depois da guerra ter acabado"). "Apocalypse Now", enfim, é um filme assombrado pelo fantasma de um demiurgo (o coronel Kurtz, de Marlon Brando), "Diários da Bósnia" tem a aparência de uma arca de Noé abandonada.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Que fazer quando tudo arde(u)? "Diários da Bósnia" é um filme-fluxo, como "Apocalypse Now", mas é o anti- "Apocalypse Now". Coppola filma a guerra como uma explosão, um épico (exaltante, portanto) dos seus efeitos de destruição, Sapinho filma-a como um suspiro, em pequenos gestos. "Apocalypse Now" é uma descida até à morte, "Diários da Bósnia" carrega desde o início o signo da mortandade (não é por acaso que uma das primeiras sequências é a imagem de um cemitério em Sarajevo, com Sapinho-narrador a perguntar-se "como é que estavam as pessoas dois anos depois da guerra ter acabado"). "Apocalypse Now", enfim, é um filme assombrado pelo fantasma de um demiurgo (o coronel Kurtz, de Marlon Brando), "Diários da Bósnia" tem a aparência de uma arca de Noé abandonada.
"Diários da Bósnia" é narrado na primeira pessoa, por Sapinho, mas não é o relato das aventuras ou peripécias de um viajante. É, antes, uma deambulação, mais mental do que física, por um território (uma humanidade) em suspensão. O seu "pathos" decorre da ausência de "pathos", por assim dizer. Sapinho filma um capuchinho vermelho ziguezagueando na neve, um tufo de rosas num cenário de abandono, os buracos das balas, o interior de um Museu de História Natural com os seus espécimes mortos classificados, rotulados, votados ao esquecimento, vestígios, traços, sinais - e filma tudo isto (e as pessoas, as poucas pessoas no filme que nunca são interpeladas directamente) como se o seu silêncio fosse mais eloquente (e quase sempre é). Como se olhássemos esses traços tanto quanto eles nos olham a nós. Por aqui percebe-se que não é um filme sobre a especificidade de um conflito na Bósnia, mas um filme com ressonâncias mais profundas, e profundamente humanas. Como nos romances do alemão W.G. Sebald, referência assumidíssima e explícita, é uma obra de exumação, onde se cruzam "travelogue", memória e uma documentação quase científica, consciente de que a (nossa) História é feita de sedimentação. Sedimento e sentimento (mas sem sentimentalismos), eis "Diários da Bósnia".