No princípio eram os morcegos
Quando, em 1989, Tim Burton realizou o seu "Batman" partia da ideia da multidimensionalidade da imagem fílmica para dar corpo a um imaginário retirado dos "comics", as aventuras de um super-herói que conhecera fortuna televisiva (e um filme que explorava, em 1966, o seu sucesso "folclórico"), mas ao qual faltava complexidade e espessura. O filme que, praticamente, iniciava a saga reconstruía uma Gotham City de grande esplendor cenográfico, explanava a relação do herói com o espaço e, ao contrário das experiências com o Super-Homem, não enjeitava leituras psicanalíticas e relações profundas com as representações do Mal, nem soluções brilhantes para apresentar os "gadgets" ou o super vilão, um "Joker" graficamente perfeito, confiado ao excesso histriónico de Jack Nicholson.
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Quando, em 1989, Tim Burton realizou o seu "Batman" partia da ideia da multidimensionalidade da imagem fílmica para dar corpo a um imaginário retirado dos "comics", as aventuras de um super-herói que conhecera fortuna televisiva (e um filme que explorava, em 1966, o seu sucesso "folclórico"), mas ao qual faltava complexidade e espessura. O filme que, praticamente, iniciava a saga reconstruía uma Gotham City de grande esplendor cenográfico, explanava a relação do herói com o espaço e, ao contrário das experiências com o Super-Homem, não enjeitava leituras psicanalíticas e relações profundas com as representações do Mal, nem soluções brilhantes para apresentar os "gadgets" ou o super vilão, um "Joker" graficamente perfeito, confiado ao excesso histriónico de Jack Nicholson.
Em "Batman Regressa" (1992), Burton desenvolvia o que no filme anterior tinha foros de cenário habitado, para revisitar o expressionismo alemão: desde logo, na personagem de Max Schreck (Christopher Walken), nome pedido emprestado ao actor de "Nosferatu" de Murnau; também no desdobramento dos vilões complexos da Catwoman e do Penguin. O Mal "caligaresco" instituía-se como cerne de uma incomodidade, em que o representante do Bem (com a máscara ambígua de Michael Keaton) afrontava, respeitando o grafismo original, mas conferindo-lhe grandeza mítica e densidade dramática.
À genialidade de Burton veio contrapor-se, em "Batman Para Sempre" (1995), a platitude aventurosa de Schumacher que se afastava de quaisquer análises do mito, reduzindo-o a objecto de consumo "animado": Val Kilmer não ia além da dimensão mais óbvia de uma leitura dos "comics"; Chris O"Donnell introduzia Robin na saga, sem grande trabalho sobre o estatuto da sua relação com Batman, forçando o registo limitado de filme para adolescentes. Perdera-se, pois, o investimento filosófico, ético e estético no mundo de Gotham como microcosmos metropolitano; ganhara-se mais um super-herói de pacotilha. "Batman e Robin" (1997) adoptava o carisma de George Clooney, figurava Uma Thurman numa saborosa Poison Ivy, mas regressava a uma matriz quase televisiva da série dos anos 60.
Por tudo isto, se torna tão interessante este "Batman, o Início" que regressa ao carácter psicótico do herói, dando como razão para os seus terrores o ataque dos morcegos, enquanto criança, no fundo do poço. Na prática, o filme assume-se como "prequela", mas não se coíbe de reencenar a cena da morte dos pais, de reescrever a história da primeira parte do "Batman (I)" de Burton. A grande diferença reside, aliás, no seu carácter humano, na vulnerabilidade de um herói, dependente da sua própria força e da eficácia dos inventos (por que nos lembrámos do arsenal de "gadgets" fabricados para James Bond?) resgatados a uma das dependências do império paterno, chefiada por Morgan Freeman, em preciosa rábula.
Outra das novidades deste reciclado olhar sobre o mito passa pelo cruzamento com outros géneros, nomeadamente com os filmes de artes marciais, a justificar um vilão, vingador dos males urbanos e purificador dos pecados concentracionários, entregue a um melífluo Liam Neeson - por vezes pouco à vontade no seu "boneco oriental". No entanto, a mais-valia do filme repousa no "casting" mais que perfeito de Christian Bale, nervoso, frágil e obcecado, humano e sobrehumano, dando ao seu Batman um carácter freudiano, que convém à revisão proposta, numa dualidade complexa que dá, em simultâneo as duas faces da sua "esquizofrénica" personagem.
Por outro lado, sem fazer esquecer a atmosfera cénica e dramática de Burton, a intervenção de Nolan atinge uma operática grandeza, que explora todos os recantos do cenário e faz do elenco um conjunto de enorme coerência, a começar pelo mordomo de Michael Caine, de uma minúcia quase maníaca, a rimar com o "novo" herói com quem faz dupla: nunca antes, a personagem tivera idêntico rigor nos gestos, no sotaque, na definição por pequenos detalhes de uma inexplicável fidelidade atávica.
O argumento rejeita grandes desvios e concentra-se em linhas de força claramente definidas: o medo, a perda, o sentido do dever, a dificuldade e a urgência da acção. A relação com o (bem) tipificado polícia honesto (Gary Oldman em registo de cuidado "underacting") resulta em pleno, sem demagogias, nem facilidades, integrando-se, ora num tom próximo do sadomasoquismo, ora num registo de verosímil camaradagem virtual: as personagens jogam bem uma com a outra e estabelecem nexos profundos. Isto traz-nos a uma última questão essencial: "Batman, o Início" é um filme de acção, em que a acção (os efeitos especiais, as explosões, a ganga adolescente) aparece submetida a uma disciplina do contexto dramático, nunca sacrificando o essencial ao acessório. Nolan não precisa de provar a sua destreza técnica e aceita domar a sua desvairada imaginação visual a uma gigantesca fábula gótica, negra como as asas dos morcegos que estão na origem dos terrores do protagonista.