Longa viagem pela noite

Adaptando um velho romance de Georges Simenon publicado nos anos 50, Cédric Kahn (que os espectadores portugueses conhecem por "O Tédio") arranca com "Sinais Vermelhos"/ "Feux Rouges" aquele que muito provavelmente é o seu melhor filme. Inscreve-se sem grande atrito num modelo de "thriller", mas neste caso ser "um filme de género" não equivale necessariamente a ser "um filme de convenção". Chamar-lhe-íamos um "thriller conjugal", algo em que toda a acção e toda a tensão se desenvolve em paralelo com o desbobinar de uma crise matrimonial - e não deixa de ser curioso que Kahn tenha referido o "De Olhos Bem Fechados"/"Eyes Wide Shut" de Stanley Kubrick como uma referência inspiradora para o seu filme. O certo é que "Sinais Vermelhos" não mostra outra coisa (ou mostra, mas isto é o essencial) para além de um casal num carro, em viagem para as férias de Verão, e os problemas, os verdadeiros problemas, só acontecem quando ela (Carole Bouquet) aparentemente se aborrece e desaparece sem deixar rasto, deixando-o a ele (Jean-Pierre Darroussin) sozinho numa noite de pesadelo (e muito álcool em cafés de beira da estrada). A bem dizer, o mal estar está lá desde o princípio, desde aquela série de "establishing shots" (uns quantos picados sobre paisagens parisienses) que "desnaturalizam" o olhar sobre Paris (pensamos na estratégia de Jean-Luc Godard em "Alphaville") e redimensionam o lugar dos seres humanos dentro da cidade (pequenos pontos dominados pelo décor). Isto dado, o décor começa a crescer e a tornar-se mais invasivo: a câmara "desce" à altura das ruas para apanhar o protagonista, mas ele aparece embrulhado pelo calor insuportável de um dia de Verão, pela violência dos ruídos e do tráfico quotidiano (na maneira como filma os carros, as ruas e as estradas, "Sinais Vermelhos" tem também um pouco de "Crash", de Cronenberg). A incomodidade transmite-se logo para o espectador, que percebe depressa que em "Sinais Vermelhos" não precisará de acontecer coisa alguma (em termos de "peripécias") para que a tensão cresça. Basta ver o rosto fechado e oprimido de Jean-Pierre Darroussin, pequeno empregado de escritório, perfeito exemplar de uma classe média acossada e submergida, o seu rosto crispado e o olhar vazio a esconder humilhações e ressentimentos. De certa maneira, e mesmo que mais à frente surjam elementos característicos de "thriller" (um criminoso evadido que anda a monte), o coração de "Sinais Vermelhos" está na ebulição deste "cocktail" que é o interior da personagem de Darroussin, aquecido pela tensão do trânsito e dos engarrafamentos, pelo "stress" das férias, pelas picardias com a mulher, mais segura de si e mais serena.

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Adaptando um velho romance de Georges Simenon publicado nos anos 50, Cédric Kahn (que os espectadores portugueses conhecem por "O Tédio") arranca com "Sinais Vermelhos"/ "Feux Rouges" aquele que muito provavelmente é o seu melhor filme. Inscreve-se sem grande atrito num modelo de "thriller", mas neste caso ser "um filme de género" não equivale necessariamente a ser "um filme de convenção". Chamar-lhe-íamos um "thriller conjugal", algo em que toda a acção e toda a tensão se desenvolve em paralelo com o desbobinar de uma crise matrimonial - e não deixa de ser curioso que Kahn tenha referido o "De Olhos Bem Fechados"/"Eyes Wide Shut" de Stanley Kubrick como uma referência inspiradora para o seu filme. O certo é que "Sinais Vermelhos" não mostra outra coisa (ou mostra, mas isto é o essencial) para além de um casal num carro, em viagem para as férias de Verão, e os problemas, os verdadeiros problemas, só acontecem quando ela (Carole Bouquet) aparentemente se aborrece e desaparece sem deixar rasto, deixando-o a ele (Jean-Pierre Darroussin) sozinho numa noite de pesadelo (e muito álcool em cafés de beira da estrada). A bem dizer, o mal estar está lá desde o princípio, desde aquela série de "establishing shots" (uns quantos picados sobre paisagens parisienses) que "desnaturalizam" o olhar sobre Paris (pensamos na estratégia de Jean-Luc Godard em "Alphaville") e redimensionam o lugar dos seres humanos dentro da cidade (pequenos pontos dominados pelo décor). Isto dado, o décor começa a crescer e a tornar-se mais invasivo: a câmara "desce" à altura das ruas para apanhar o protagonista, mas ele aparece embrulhado pelo calor insuportável de um dia de Verão, pela violência dos ruídos e do tráfico quotidiano (na maneira como filma os carros, as ruas e as estradas, "Sinais Vermelhos" tem também um pouco de "Crash", de Cronenberg). A incomodidade transmite-se logo para o espectador, que percebe depressa que em "Sinais Vermelhos" não precisará de acontecer coisa alguma (em termos de "peripécias") para que a tensão cresça. Basta ver o rosto fechado e oprimido de Jean-Pierre Darroussin, pequeno empregado de escritório, perfeito exemplar de uma classe média acossada e submergida, o seu rosto crispado e o olhar vazio a esconder humilhações e ressentimentos. De certa maneira, e mesmo que mais à frente surjam elementos característicos de "thriller" (um criminoso evadido que anda a monte), o coração de "Sinais Vermelhos" está na ebulição deste "cocktail" que é o interior da personagem de Darroussin, aquecido pela tensão do trânsito e dos engarrafamentos, pelo "stress" das férias, pelas picardias com a mulher, mais segura de si e mais serena.

Aura infernal.

É assim um filme que se vai construindo em detalhes: as fugas de Darroussin para o café ou para a tasca, para emborcar uma imperial ou um whisky (contra todos os conselhos da prevenção rodoviária); os hiatos do seu comportamento, como se lhe acendesse uma "branca" no espírito (ainda em casa, fica especado a olhar para a mulher e para nada); os planos de perfil (que equivalem neste filme às nucas dos filmes de Fritz Lang) com que Kahn filma os seus actores, maneira de os desenhar em silhueta e de salientar o que têm de inapreensível; os silêncios, as frases crispadas proferidas entre o casal; a sugestão de uma aura "infernal" a pairar sobre o mais anódino quotidiano, gerada a partir do trânsito e do movimento (notável trabalho de montagem e de som, a fazer da estrada um carrossel arrasador para os nervos).


E sobretudo a progressão de toda esta tensão, ao longo de uma noite cada vez mais densa mas também cada vez mais irreal. Sobretudo a partir do desaparecimento de Bouquet, a personagem de Darroussin está menos num pesadelo do que numa espécie de experiência de loucura, dir-se-ia que conscientemente vivida e explorada (ir até ao fim de uma noite de estrada e álcool, quando a presença de um criminoso empedernido é já só um pormenor mais, como se fosse só um elemento onírico não especialmente significativo). O certo é que, quando a manhã cai (é o grande "corte" no filme de Kahn) Darroussin parece muito mais calmo. E poderá então, nessa parte "diurna" do filme que é também o momento do reencontro com a lucidez possível, perceber o que realmente lhe aconteceu a si e à mulher, numa espécie de longo "dénouement" que equivale tanto a uma "resolução dum mistério" como a uma "recomposição dum casal".

Tem-se dito que "Sinais Vermelhos" é um filme de sinal "hitchcockiano", o que parece correcto e nem implica, da parte de Kahn, o recurso a um jogo de citações (só a música de Debussy a soar, improvavelmente, como uma partitura de Bernard Herrmann). Mas não é o Hitchcock mestre-intriguista nem o cineasta da "mise-en-scène" espectacular que Kahn evoca; antes aquele, mais secreto, capaz de extrair a máxima perturbação de vazios narrativos e de deixar um plano ser invadido pela carga sombria do olhar de um protagonista alucinado - será o maior elogio que se pode fazer, em termos "hitchcockianos", a "Sinais Vermelhos": como no cineasta de "Psico", o medo e a incomodidade nascem e crescem a partir de dentro, o exterior (a "realidade") é mera câmara de ressonância e ampliação. O filme de Cédric Kahn, sobretudo na sua parte inicial "até ao fim da noite", é uma bela variação em torno dessa ideia.