As faces de Hitler
O trejeito "voyeurístico" contido neste reenquadramento é quase um "raccourci" do olhar que o filme tem para dar sobre Hitler. A atracção do "interdito", em primeiro lugar: espreitar os últimos dias de Hitler com o fascínio de quem cruza um espaço proibido. A "fetichização" do ditador, depois: "A Queda" não ultrapassa o imediatismo de um efeito automático, agitando um boneco de Hitler antevendo logo a prostração que ele induzirá no espectador (não é muito diferente de uma lógica de viagem num comboio-fantasma). Finalmente, a sinalização do lado humano, vulnerável e doente do Hitler envelhecido, numa composição "realista" de pormenor, quase como crónica da performance de um actor.
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O trejeito "voyeurístico" contido neste reenquadramento é quase um "raccourci" do olhar que o filme tem para dar sobre Hitler. A atracção do "interdito", em primeiro lugar: espreitar os últimos dias de Hitler com o fascínio de quem cruza um espaço proibido. A "fetichização" do ditador, depois: "A Queda" não ultrapassa o imediatismo de um efeito automático, agitando um boneco de Hitler antevendo logo a prostração que ele induzirá no espectador (não é muito diferente de uma lógica de viagem num comboio-fantasma). Finalmente, a sinalização do lado humano, vulnerável e doente do Hitler envelhecido, numa composição "realista" de pormenor, quase como crónica da performance de um actor.
Provavelmente é preciso ser-se alemão (ou israelita) para não se achar exagerado o estardalhaço à volta do filme; mas ao mesmo tempo ele faz parte desse estardalhaço, na medida em que não é capaz de responder à questão de fundo: que fazer, 60 anos depois, com Hitler? Como o retratar? Demonizá-lo ou reduzi-lo à sua mais simples (e humana) expressão? Esta incapacidade de resposta sente-se no filme sobretudo se pensarmos no seu Hitler como o Hitler mais indefinido de todos quantos já foram retratados em cinema. É um Hitler "neutro", sobre o qual não recai nenhum olhar estruturante - num filme em que ele é o centro de tudo, este é um "não-retrato" de Hitler. É uma lógica simples (e simplista): agita-se um espantalho e fica-se à espera das reacções. Sensacionalista, nesse sentido.
Curiosamente, este poder do "espantalho" de Hitler podemos vê-lo condensado num filme de 1942, "To Be Or Not To Be" de Ernst Lubitsch, onde o genial cineasta utilizava (com propósitos de sátira) o "efeito de real" provocado pela presença de um actor disfarçado de Hitler para salientar (e desmontar) essa prostração. Em 2005, "A Queda" mostra que, num certo sentido, ainda estamos em 1942, e que uma imagem de Hitler é sempre "transparente": não se vê a imagem, mas Hitler ele próprio. E que não se diga que a consciência disto não fez parte do jogo - a esse respeito, bem jogado - de Hirschbiegel.
Bruno Ganz, no papel do "espantalho", é pela sua parte irrepreensível. O seu trabalho de composição é notável, mesmo (ou sobretudo) quando parece mais perdido dentro de Hitler do que Hitler parecia perdido dentro do "bunker" em Abril de 1945. Mas cabe aqui lembrar o "Moloch" de Alexandr Sokurov, o primeiro filme da trilogia do cineasta russo dedicada a vultos da tirania no século XX (filmou depois Lenine e Hirohito): se o problema deste Hitler é ser "humano", então ainda bem que poucos viram o de Sokurov. Mas o de Sokurov era claramente um "retrato", ou seja, um olhar e uma caracterização conduzidos em determinada direcção - o fascínio de Sokurov, no entanto, era semelhante ao que parece motivar o de Hirschbiegel: o facto de Hitler ter sido quem foi e ter feito o que fez e ser, ao mesmo tempo, "um de nós". "Moloch" é um filme em recusa da "excepcionalidade" de Hitler, inclusive em recusa da sua "monstruosidade"; os problemas figurativos (e o afastamento da "neutralidade") ultrapassavam-se porque Sokurov não se detinha no "realismo" e acelerava rumo ao "hiper-realismo": era um Hitler de pele verde de tão macilenta, farrapo humano prisioneiro de todas as doenças, reais ou imaginárias.
Hischbiegel, por seu lado, é desajeitado até no desenho das figuras secundárias (mas proeminentes) do III Reich. Goebbels, apagadíssimo, tem rosto de "cartoon" (sem nenhum do carisma que o original devia ter); o arquitecto Albert Speer aparece a corporizar se não o nazi "bom", pelo menos o nazi "lúcido"; sobre Eva Braun o olhar tem a mesma indefinição do olhar sobre o ditador (mas Eva é mesmo mais indefinível). Outra mulher, Magda Goebbels, acaba por ser a personagem mais perturbante do filme, e a cena da morte dos filhos é a melhor de "A Queda" (mesmo que para ser verdadeiramente boa devesse ser apenas uma elipse). Nota final: com os seus problemas de olhar "estruturante" a revelarem-se ainda na relação com os espaços (o do "bunker" e o da "superfície"), e ainda com um excesso de simbologias redentoras (o miúdo com que o filme acaba, e que desde cedo se percebeu que tinha reservado o papel de imagem da "nova Alemanha"), é um filme que põe sempre questões interessantes, e é um filme interessante por isso mesmo. No fim, se persistir algum incómodo, pode-se ir buscar o melhor antídoto, e rever o Adenoid Hynkel do "Grande Ditador" de Chaplin. Como alguém disse, um nazi que em 1942 já tivesse visto o Chaplin e o Lubitsch percebia que o III Reich estava condenado: nada que se prestasse assim à ridicularização podia ter grande futuro. Mesmo que entre 1942 e 1945 se tenham passado demasiados anos.