Casa Pia: o julgamento do caso que abalou o regime

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Depois de identificar os arguidos, o tribunal pode ler a pronúncia, mas tal não deverá acontecer, dado que a peça processual em questão tem quase 300 páginas Tiago Petinga/Lusa

Para trás ficaram as decisões de tribunais superiores que abalaram uma parte do processo penal português, as notícias que relançaram o debate sobre o jornalismo e as violações do segredo de justiça, as polémicas que arrasaram a liderança de Ferro Rodrigues no PS. Na sala da Boa-Hora vão julgar-se os factos do processo mas na sociedade portuguesa ficaram danos colaterais que vão perdurar. Para muitos, este foi o caso que abalou o regime, obrigando o Presidente da República a fazer comunicações ao país, provocando demissões, entre as quais avulta a do director-geral da Polícia Judiciária, Adelino Salvado, questionando a intervenção do procurador-geral da República, Souto Moura.

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Para trás ficaram as decisões de tribunais superiores que abalaram uma parte do processo penal português, as notícias que relançaram o debate sobre o jornalismo e as violações do segredo de justiça, as polémicas que arrasaram a liderança de Ferro Rodrigues no PS. Na sala da Boa-Hora vão julgar-se os factos do processo mas na sociedade portuguesa ficaram danos colaterais que vão perdurar. Para muitos, este foi o caso que abalou o regime, obrigando o Presidente da República a fazer comunicações ao país, provocando demissões, entre as quais avulta a do director-geral da Polícia Judiciária, Adelino Salvado, questionando a intervenção do procurador-geral da República, Souto Moura.

Constituíram-se assistentes no processo, ou seja, acompanham o Ministério Público na acusação, para além da Casa Pia de Lisboa (CPL), 17 alunos da instituição, nascidos entre 1984 e 1988, e que, à data dos factos em apreço neste julgamento, nos anos de 1999 e 2000, tinham entre 12 e 16 anos. Um total de 29 rapazes nascidos entre 1983 e 1991 - com idades que vão dos oito aos 16 anos à data dos factos em causa - aparecem também como "ofendidos".

"A esmagadora maioria das condutas imputadas aos arguidos na acusação diz respeito a menores de 14 anos", refere o despacho de pronúncia da juíza Ana Teixeira Silva, que acrescenta: "O que a análise destes autos revela é uma realidade impressionante. Tão ou mais importante do que a noticiada angariação de alunos menores da CPL para práticas sexuais fora da instituição é a dimensão (assustadora) dos relatos de ilícitos sexuais perpetrados dentro dos muros dos vários colégios por inúmeras pessoas pertencentes ou ligadas à instituição." Entre as "inúmeras outras testemunhas" que, segundo o processo, "referenciam alguns dos arguidos como estando envolvidos em actos de pedofilia e de homossexualidade com adolescentes, alunos da CPL e outros rapazes não pertencentes à instituição", contam-se muitos alunos e ex-alunos, funcionários e educadores da instituição.

O arguido que responde pelo maior número de crimes é Carlos Silvino, ex-funcionário da CPL, pronunciado sozinho, num primeiro processo, em 4 de Abril de 2003, por 17 crimes de abuso sexual de crianças, 16 de abuso sexual de pessoa internada e dois de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. Num segundo processo, em 31 de Maio deste ano, foi pronunciado por 252 crimes de abuso sexual de pessoa internada, 346 de abuso sexual de crianças, três de violação agravada, dois de peculato de uso e 32 de lenocínio. O ex-funcionário da Casa Pia, detido em Novembro de 2002, viu os dois processos serem fundidos num só, por decisão tomada no início de Setembro pelo juiz Ricardo Cardoso.

"Essa fusão foi, sem dúvida, uma vitória do advogado deste arguido [José Maria Martins]. Uma lógica de bom senso devia permitir que os dois processos fossem juntos, mas o Código de Processo Penal não o permite. Para juntar os dois processos, o dr. José Maria Martins perverteu as regras e teve toda a razão para o ter feito", afirmou ao PÚBLICO o advogado Francisco Teixeira da Mota.

José Maria Martins fez o que pôde para juntar os processos, uma vez que o seu constituinte, se respondesse sozinho num julgamento, seria inevitavelmente condenado pelos crimes de que ia acusado. Ao responder em conjunto com outros arguidos, Carlos Silvino pode optar por colaborar com a acusação e obter do tribunal um tratamento mais favorável.

A junção dos dois processos faz com que, no julgamento que hoje começa, Carlos Silvino responda por um total de quase 700 crimes. Segue-se Manuel Abrantes, acusado de 51 crimes, sendo 43 de abuso de pessoa internada, cinco de abuso sexual de crianças, dois de lenocínio e um de peculato de uso. Ao embaixador Jorge Ritto são imputados nove crimes de abuso sexual de crianças e dois de lenocínio e a Carlos Cruz cinco crimes de abuso sexual de crianças e um de abuso sexual de adolescentes. O médico Ferreira Dinis está acusado de 18 crimes de abuso sexual de crianças e o advogado Hugo Marçal de 14 crimes de abuso sexual de crianças e 21 de lenocínio. Sobre Gertrudes Nunes recai a acusação de 35 crimes de lenocínio e sobre o arqueólogo Francisco Alves a de um único crime de posse ilegal de arma.

O julgamento - a cargo de um colectivo presidido por Ana Peres e tendo como juízes-asa Ester Pacheco dos Santos e José Manuel Barata, estando a acusação apresentada pelo procurador da República, João Aibéo - decorre na sala de audiências da 7ª Vara do Tribunal da Boa-Hora. Depois da sessão de abertura, com acesso permitido aos jornalistas, os trabalhos decorrerão, em princípio, à porta fechada, embora não esteja afastada a hipótese de as testemunhas arroladas pelos arguidos, com excepção das de Gertrudes Nunes, serem ouvidas com a comunicação social presente.

Depois de identificar os arguidos, o tribunal pode ler a pronúncia, mas tal não deverá acontecer, dado que a peça processual em questão tem quase 300 páginas. A seguir, os juízes passarão a ouvir os arguidos, um a um, começando por Carlos Silvino, cujas declarações deverão ocupar várias sessões, dado o desejo que ele tem, manifestado através do seu advogado, de colaborar com o tribunal.

Os outros arguidos só podem começar a assistir às sessões - e a ouvir o que os outros arguidos têm a dizer - depois de eles próprios terem prestado declarações. Cada um responderá às perguntas do juiz, havendo também lugar a questões do Ministério Público - com fama de ser muito hábil a interrogar - e dos advogados de defesa. Seguem-se as testemunhas de acusação e de defesa, interrogadas por quem as apresenta, embora também possa haver contra-interrogatório por parte dos advogados, do Ministério Público e dos juízes. Depois das alegações finais da acusação e da defesa, e das últimas declarações dos arguidos, o colectivo elabora o acórdão do julgamento, que se antevê com uma duração de vários meses.

O advogado António Pinto Pereira, que representa a Casa Pia, assistente no processo, não estará presente na abertura do julgamento, retido na Venezuela pela defesa dos envolvidos no caso da apreensão, no aeroporto de Caracas, de uma carga de droga prestes a embarcar num voo da Air Luxor para Lisboa.