Carne fantasma
Nessa altura, em 1975 mais precisamente, Rivette chegou a iniciar a rodagem de "História de Marie e Julien" (ou, pelo menos, a rodagem do argumento que então existia), com um estranho "cast" composto por Albert Finney e Leslie Caron, mas abandonou-a dois dias depois de começar, entre angústias criativas e uma crise pessoal. Por isso se tem dito, com estas boas razões, que estamos perante um "filme-fantasma": porque é um filme que "volta", quase 30 anos depois de uma aparente morte prematura, e porque, como algo iniciado e nunca terminado, "unfinished business" (como o de tantos fantasmas de cinema), nunca deixou de pairar no espírito do próprio Rivette (íamos escrever "como uma assombração", mas é demasiado óbvio).
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Nessa altura, em 1975 mais precisamente, Rivette chegou a iniciar a rodagem de "História de Marie e Julien" (ou, pelo menos, a rodagem do argumento que então existia), com um estranho "cast" composto por Albert Finney e Leslie Caron, mas abandonou-a dois dias depois de começar, entre angústias criativas e uma crise pessoal. Por isso se tem dito, com estas boas razões, que estamos perante um "filme-fantasma": porque é um filme que "volta", quase 30 anos depois de uma aparente morte prematura, e porque, como algo iniciado e nunca terminado, "unfinished business" (como o de tantos fantasmas de cinema), nunca deixou de pairar no espírito do próprio Rivette (íamos escrever "como uma assombração", mas é demasiado óbvio).
Ei-lo então, o "filme-fantasma", retrabalhado a partir do "cadáver" deixado em 1975 (leia-se: o argumento e as indicações concebidas na altura) por Pascal Bonitzer e Christine Laurent, fiéis colaboradores de Rivette desde há cerca de 20 anos.
Foi no número dos "Cahiers du Cinéma" onde se destacou "História de Marie e Julien" que se lembrou uma velha frase de Rivette - "um filme é, antes do mais, a reportagem da sua rodagem" - para justificar o arranque do filme. Muito justamente: é por um sonho que o filme começa, e esse sonho reproduz (vejamos as coisas assim) como um preâmbulo aquela que será, logo a seguir, a "primeira cena" do filme, o reencontro entre Marie (Emmanuelle Béart) e Julien (Jerzy Radziwilowicz). Julien sonha com o reencontro, Julien reencontra; "mutatis mutandis", é também Jacques que sonha e Jacques que reencontra. A assombração tem duplo sentido, este filme recebido "em legado" do mundo dos mortos faz escala no mundo dos sonhos antes do regresso à terra. Muito convenientemente para um "filme-fantasma", é também um "filme de fantasmas", não por acaso - é a abertura que logo o indica - instalado nessa zona de fronteira que é a agitada terra onírica. Para o filme - o lado "reportagem da sua rodagem" - tratar-se-ia de lhe escapar, de se confirmar enquanto objecto material, palpável; para as suas personagens, para Marie sobretudo, a questão é semelhante. E mais uma vez para levar à letra: ou não pede ela a Julien que "não a deixe adormecer", essa frase que, mau grado muito boa gente não resistir a evocar M. Night Shyamalan a propósito deste filme, poderia vir intacta do "Pesadelo em Elm Street" do mal amado Wes Craven?
Não que Rivette "cite", como é óbvio. Nem Shyamalan nem Craven, nem mesmo Hitchcock ("Vertigo") ou Dreyer ("Ordet"), outras lembranças que ocorrem com frequência. Está certo, são histórias de mortos, de mortos-vivos e vivos-mortos, mas são projecções que vêm mais duma cabeça de espectador cheia de filmes do que projecções do próprio filme. Rivette evoca, mais do que cita, e evoca, sobretudo, "matrizes": em entrevista afirmou, por exemplo, "que se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de 'Lenda de Marie e Julien', como 'Lenda de Tristão e Isolda'". No filme será o universo de Edgar Allan Poe a evocação mais explícita, de histórias como a de "Ligeia" a maldições como a dos Usher, histórias de mulheres e fantasmas, pesadelos e vigílias, cenários de mausoléu. Sobretudo, histórias de amores "post-mortem": o primeiro verdadeiro sobressalto do filme é quando nos é apresentado um gato cor de corvo chamado "Nevermore". Não é bem citação, é sobretudo sinalização, "pista de leitura", um holofote lançado sobre o romantismo excessivo e tumular, um gatilho para a "mórbida agudeza dos sentidos": peguem no brilho negro do pelo do gato, parece dizer Rivette, é esta a luz do meu filme.
falemos de sexo.Todo o "fantástico" de "História de Marie e Julien" vem daí, desse confronto entre o palpável e o imaginável, maldito ou bendito. Território bem "rivettiano", o dum "fantástico" gerado por uma imensidão de falsas pistas (algumas são verdadeiras) tendentes a conduzir a imaginação do espectador por caminhos que só ele, espectador, saberá que seguiu e por que os seguiu. Há "intriga" em "História de Marie e Julien", e faltava falar da personagem da "Madame X", mulher detentora de chaves importantes para o desmanchar da intriga. Mas Rivette, sempre "langiano", adepto de complots, conspirações e sociedades secretas - e de "segredos terríveis" como em Poe - diverte-se a multiplicar ecos da própria intriga, a sugeri-la muito maior e muito mais complexa, a inventar rituais (Béart a recitar uma lengalenga numa língua incompreensível) que, damos por nós a pensar, quase se aproximam da auto-paródia (ou da auto-citação, em todo o caso, e é o ponto onde nos ficam mais dúvidas). Quando, no fundo, a história não é assim tão complicada: é uma história de amor entre Marie e Julien, enquadrada por um segredo de facto "terrível" (mas para o descobrir é preciso ver o filme).
Mas outra conversa é possível. Esta, por exemplo, que se refere (outro aspecto suficientemente notado) à presença do sexo (do sexo explícito, entenda-se) no cinema de Rivette, porventura pela primeira vez - e "assim", como aqui, de certeza pela primeira vez. O que é importante aí nem é bem o sexo, mas o que ele implica, sobretudo em termos de figuração (e de representação, num sentido mais amplo) de uma intimidade, e em particular de uma intimidade entre os protagonistas masculinos de Rivette e as mulheres. De mulheres está o cinema de Rivette cheio, tantas vezes como protagonistas e em grupo ("La Bande des Quatre", "Alto, Baixo, Frágil", dois exemplos relativamente recentes); mas são sempre criaturas fugidias, não necessariamente altivas mas sempre esquivas, "resistentes" tanto aos homens-personagem como ao "homem- câmara" - o cinema de Rivette, numa certa perspectiva, é a "reportagem" de um longuíssimo combate pelo acesso a uma intimidade, que passa pelo corpo certamente, mas onde ele é, como o sonho do início de "História de Marie e Julien", uma mera "escala". Às incertezas desse combate, que faz de um "plateau" ou, no limite, de um plano, um "ring" imaginário, já Rivette dedicou um filme por inteiro, "A Bela Impertinente". Reencontra aqui, e não é, não pode ser, um acaso, a sua protagonista desse filme, Emmanuelle Béart - e se há coisa que as cenas de sexo aqui evocam são as sessões de pintura de "A Bela Impertinente", as coreografias e as poses, o "aprisionamento" e a "fuga", a fixação e a mobilidade. Coisas que têm tudo a ver com o pequeno ensaio sobre a carne de que são feitos os fantasmas que "História de Marie e Julien" acaba por ser.