Homens para queimar

"Silmido" vem do coração da indústria coreana, e é portanto um pouco diferente dos filmes coreanos que têm estreado em Portugal, muito mais orientados por uma lógica de "autor", seja esse autor um jovem como Kim Ki-Duk ou um veterano como Im Kwon-Taek (mas ainda falta aquele que se a figura como o mais promissor cineasta coreano contemporâneo, Hong Sang-Soo, que esteve em Cannes com "La Femme est L'Avenir de l'Homme").

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"Silmido" vem do coração da indústria coreana, e é portanto um pouco diferente dos filmes coreanos que têm estreado em Portugal, muito mais orientados por uma lógica de "autor", seja esse autor um jovem como Kim Ki-Duk ou um veterano como Im Kwon-Taek (mas ainda falta aquele que se a figura como o mais promissor cineasta coreano contemporâneo, Hong Sang-Soo, que esteve em Cannes com "La Femme est L'Avenir de l'Homme").

O nome de Woo-Suk Kang pouco dirá mesmo aos mais informados dos cinéfilos, mas na Coreia ele é uma espécie de realizador encartado de "blockbusters", normalmente apontados ao género de "acção", que terá suplantado aqueles que foram durante décadas os géneros comerciais clássicos do cinema coreano, a comédia romântica (a que os coreanos chamam o "filme de amor") e o "filme de canções".

Por outro lado, é interessante ver como mesmo num objecto com estas características e propósitos o "carburante" temático continua a ser encontrado na história da Coreia. "Silmido" relata um episódio sucedido na passagem dos anos 60 para os 70 (e cujas "chaves" foram durante muito tempo mantidos em secretismo), a criação de uma unidade especial do exército sul-coreano, à base de elementos recrutados entre condenados à morte e outros criminosos empedernidos, para uma única missão, quase suicida: atravessar o "paralelo 38", subir até Pyongyang e, uma vez lá, limpar o sebo a nem mais nem menos do que Kim Il Sung. A ideia era retaliar de maneira simétrica uma incursão de tropas especiais norte-coreanas que tinha por objectivo a liquidação do então presidente do Sul, Park Chung Hee - é aliás por essa missão norte-coreana que o filme começa.

Acontece que à ultima hora um degelo diplomático retirou "conveniência" à missão, que foi abortada (no filme, já o comando vai a caminho de Pyongyang). Que fazer, então, com aquele bando de cadastrados que se tinham tornado verdadeiras máquinas de guerra? Isso é o que o filme conta, e o seu desenlace dramático (meia dúzia de comandos "deserdados" sitiados num autocarro em Seul) foi aquilo que ficou conhecido como "o caso Silmido" (Silmido era a ilha onde estava a base do exército que treinou estes homens), envolto em brumas até ao final dos anos 80 e à "normalização democrática" do regime sul-coreano. Mas também por isso "Silmido", que durante a primeira parte parece ser um filme sobre a divisão norte/sul, recentra-se na história interna da Coreia do Sul e nos seus fantasmas intra-muros - no que é um tema mais abordado, sobretudo pelas gerações de cineastas mais jovens, do que a questão do país cortado ao meio.

Exalando eficácia e competência industrial irrepreensível, "Silmido" cresce em tensão a partir do "twist", quando o prometido filme de "rambos" coreanos à caça de Kim Il Sung se transforma num filme de acção sem... acção. A coexistência do grupo de soldados, condicionados física e psicologicamente para a acção "extrema" mas forçados à inacção, as tensões e desagregações do grupo, a revelação dos bons e dos maus carácteres, a relação com os oficiais, com a hierarquia militar e as sucessivas traições com motivação diplomática e política, tudo isto é gerido com dedo seguro e porventura com algum capital alegórico (onde está o "inimigo", afinal?). Rumo a um final onde há tanta "acção" e "suspense" como "elegia" (talvez a melhor cena do filme: os soldados encurralados a gravarem com sangue os seus nomes nas janelas do autocarro), é um filme que mesmo dentro dum estilo formatado consegue conservar-se como objecto suficientemente distinto para merecer que se lhe dedique alguma atenção.