Visão de autor

Ele não olha ninguém de frente, parece estar sempre a fitar o vazio, os seus movimentos pelo "plateau" são titubeantes e ninguém (incluindo o director de fotografia) compreende a razão de ser dos planos e enquadramentos escolhidos. Val Waxman, protótipo do cineasta "artista", com uma visão única, daquelas que deixam perplexos os simples mortais, incapazes de a atingir?

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Ele não olha ninguém de frente, parece estar sempre a fitar o vazio, os seus movimentos pelo "plateau" são titubeantes e ninguém (incluindo o director de fotografia) compreende a razão de ser dos planos e enquadramentos escolhidos. Val Waxman, protótipo do cineasta "artista", com uma visão única, daquelas que deixam perplexos os simples mortais, incapazes de a atingir?

Até poderia ser assim, mas a verdade é que neste caso Val é mesmo um realizador... sem visão. De qualquer tipo: nas vésperas da rodagem do primeiro filme que tem em mãos há vários anos, entra em estado de cegueira psicossomática, causada pela ansiedade de não poder falhar a derradeira oportunidade de relançar a carreira. Por isso, para poder aspirar a voltar a ser grande, vai ter de dirigir uma grande produção de 60 milhões de dólares às cegas...

É esta a premissa de "Hollywood Ending" (2002), o penúltimo filme de Woody Allen. Que, ao longo de quatro décadas, tem mantido como poucos um nível médio de qualidade bastante elevado. Um feito nada desprezível, ainda para mais se pensarmos que o nova-iorquino tem dedicado grande parte da carreira ao humor, um campo onde, passado algum tempo, a ameaça do cansaço espreita quase sempre.

Talvez por isso, aquando da estreia de "Hollywood Ending", o realizador tenha relembrado exemplos de génios cómicos do passado - Charlie Chaplin, Buster Keaton, W. C. Fields ou os irmãos Marx - e concluído que nenhum dos seus ídolos se manteve sempre na ribalta. "Toda a gente se esgotou. Não me consigo lembrar de ninguém que não se tenha esgotado", confessou.

Ora, talvez o autor de "Zelig" seja um caso à parte. Pois se é verdade que, de certo modo, Allen faz sempre o mesmo filme - sensação motivada quer pela repetição de temas e preocupações (as questões existenciais, a obsessão com o sexo e a morte), quer pela insistência em se colocar no centro de um universo, numa linha ténue entre real e ficção, autor e personagem -, também não o será menos que a sua obra tem conhecido evolução e mudança. Isto, claro, sem prejuízo dessas marcas definidoras.

Regresso ao passado

Assim, a anarquia burlesca inicial ("O Inimigo Público", 1969; "Bananas", 1971) amadureceu e, nos seminais "Annie Hall" (1977) e "Manhattan" (1979), deixou vislumbrar sombras de gravidade, a qual ganhou corpo no negrume dos episódios mais bergmanianos ("Intimidade", 1978; "Setembro", 1987; "Uma Outra Mulher", 1988). Depois, veio o regresso (a coincidir, de forma inocente ou talvez não, com o fim da relação com Mia Farrow) a tempos mais leves, primeiro segundo as linhas da comédia sofisticada - "Balas sobre a Broadway" (1994) e "Toda a Gente Diz que Te Amo" (1996) surgem como momentos maiores -, a seguir (numa espécie de regresso ao ponto de partida, um círculo que se fecha), de novo no registo de "slapstick" dos primeiros tempos, como "Hollywood Ending" bem exemplifica.

De facto, o filme é provavelmente o mais tresloucado do realizador desde as paródias arrasadoras da época de juventude. Nele, Allen surge mais uma vez como protagonista, o habitual neurótico inseguro, mas desta vez reforça ainda mais as coincidências com o seu "duplo", ao fazer dele um cineasta. Nova-iorquino, claro (Val até quer filmar "A Cidade que Nunca Dorme", ode à sua musa inspiradora, a preto e branco, ao som de Cole Porter e Irving Berlin...), e a alavanca para o lançamento de um olhar corrosivo sobre o mundo da sétima arte.

Na lista de alvos, Hollywood tem primazia, ou não fossem as relações do realizador com a Meca do Cinema marcadas por um forte sentimento contraditório, entre o amor e o desprezo: por um lado, cresceu a ver filmes oriundos da indústria americana e alguns influenciaram-no profundamente; por outro, sempre se mostrou avesso às pressões que tantas vezes os estúdios exercem sobre os criadores, preferindo trabalhar à margem desse sistema. De qualquer forma, Allen vai mais longe do que os executivos obcecados com a saúde física e os estudos de mercado, troçando também, com suprema ironia, dos críticos franceses que sempre o defenderam como "autor": no final, reconhecem, num filme feito por um cego, sem pernas nem cabeça, a obra-prima de Val...

Mas o mais surpreendente (e entusiasmante) é que nesta rajada quase ininterrupta de "gags" haja espaço para o esboço de uma ternurenta relação, feita de ajuda e cumplicidade, entre o fragilizado Val e a ex-mulher, Ellie (uma resplandecente Téa Leoni). Ao reavivarem memórias dos altos e baixos de um tempo passado, os dois reencontram um amor esquecido. E de repente, é como se regressássemos à magia de "Annie Hall" ou "Manhattan", com Allen a descobrir em Leoni - pura classe, encantadora e sofisticada -, a Diane Keaton para o novo milénio.