Um outro mundo é possível
Anda alguém a tentar mexer com as nossas cabeças, pelo menos desde que "Queres Ser John Malkovich?" (1999) abriu a caixa de Pandora. Era nesse filme, lembram-se?, que Malkovich "himself" descobria horrorizado que lhe estavam a ocupar o cérebro. Tanto "Queres Ser John Malkovich?" como, agora, "O Despertar da Mente", carregam a mesma assinatura, a do argumentista-prodígio Charlie Kaufman, e, para todos os efeitos, é dentro da cabeça dele que estamos. Reconhecem-se os sinais: as convulsões narrativas, as neuroses angustiadas, o esbatimento entre real e virtual, a demonstração algo laboratorial da triste comédia da condição humana. É assim que se pode identificar um universo autoral "kaufmaniano" antes mesmo de se falar do realizador dos seus argumentos, qualquer que ele seja, foi assim que começou a infiltrar-se, como um vírus, no cinema americano. Sobre "O Despertar da Mente", por exemplo, afirmou: "Não parti do princípio que ia escrever uma história de amor. Mas é intencional a minha fúria contra o romance convencional de Hollywood, porque isso deu cabo de mim quando eu estava a crescer, e a minha experiência não tem nada a ver com essas coisas." Fica o programa: um outro mundo é possível.
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Anda alguém a tentar mexer com as nossas cabeças, pelo menos desde que "Queres Ser John Malkovich?" (1999) abriu a caixa de Pandora. Era nesse filme, lembram-se?, que Malkovich "himself" descobria horrorizado que lhe estavam a ocupar o cérebro. Tanto "Queres Ser John Malkovich?" como, agora, "O Despertar da Mente", carregam a mesma assinatura, a do argumentista-prodígio Charlie Kaufman, e, para todos os efeitos, é dentro da cabeça dele que estamos. Reconhecem-se os sinais: as convulsões narrativas, as neuroses angustiadas, o esbatimento entre real e virtual, a demonstração algo laboratorial da triste comédia da condição humana. É assim que se pode identificar um universo autoral "kaufmaniano" antes mesmo de se falar do realizador dos seus argumentos, qualquer que ele seja, foi assim que começou a infiltrar-se, como um vírus, no cinema americano. Sobre "O Despertar da Mente", por exemplo, afirmou: "Não parti do princípio que ia escrever uma história de amor. Mas é intencional a minha fúria contra o romance convencional de Hollywood, porque isso deu cabo de mim quando eu estava a crescer, e a minha experiência não tem nada a ver com essas coisas." Fica o programa: um outro mundo é possível.
Não será por acaso que, para a sua hipótese de uma "alter-Hollywood", Kaufman se tenha aliado a realizadores com a folha (quase) limpa: Spike Jonze, Michel Gondry e até George Clooney ("Confissões de Uma Mente Perigosa"). Todos eles se estrearam na realização com argumentos de Kaufman, mas para a linhagem que aqui vem ao caso bastará convocar os dois primeiros: tanto Jonze como Gondry vêm do universo dos videoclips, tanto um como outro ambicionavam a transição para o cinema. Spike Jonze foi o primeiro a dar o salto, com "Queres Ser John Malkovich?" (seguiu-se "Inadaptado", em 2003). Foi ele quem proporcionou o encontro entre Kaufman e o francês Michel Gondry, que até tinha vindo para Hollywood com filmes como "Regresso ao Futuro" e "O Feitiço do Tempo" na cabeça. Estava-se mesmo a ver que os labirintos narrativos de Kaufman não andavam longe das pretensões de Gondry. O francês até trazia uma ideia sugerida por um amigo - e se um dia alguém recebesse uma carta a dizer que tinha sido apagado da memória de uma pessoa próxima? -, mas Kaufman contrapropôs-lhe "Human Nature" (comercialmente inédito em Portugal). Foi a estreia desastrada de Gondry no cinema em 2001, filme contra-natura inscrito na evolução darwiniana da espécie humana, entre civilização e macacada, como que exibindo restos de bizarria que tinham ficado de fora de "Queres Ser John Malkovich?" (onde a culpa também era do macaco). Havia pêlo a mais (sic), artifício a rodos, e o espectador era deixado no limbo, sem nunca entrar no que mais parecia um videoclip de Gondry em versão longa - estavam lá marcas habituais, como o regresso à natureza e a vontade de efabulação que explorou no seu trabalho com Björk ("Human behaviour", "Isobel", "Bacherolette", entre outros clips). Gondry anotou 40 páginas com tudo o que tinha falhado em "Human Nature" e, ao que parece, tentou apagar qualquer conotação com o filme: no recém-editado DVD "The Work of Director Michel Gondry", compilação dos seus trabalhos na área do videoclip e da curta-metragem, não há qualquer rasto da sua primeira longa-metragem, mas há dois "teasers" a anunciar "O Despertar da Mente" - um falso "spot" publicitário sobre a Lacuna Inc., empresa especializada em apagar "memórias perturbadoras", e um breve episódio em que Jim Carrey conduz a sua cama por uma L.A. nocturna cantando Elvis.
Nada que fizesse prever uma espera gratificante. Desenganem-se, pois: "O Despertar da Mente" (tradução menoríssima para o originalmente poético, e "clever", "Eternal Sunshine of the Spotless Mind") é filme para juntar ao panteão onde reinam "Punch-Drunk Love", de Paul Thomas Anderson, e "O Amor É Um Lugar Estranho", de Sofia Coppola, aí onde a comédia romântica ganhou rédeas para a experimentação e renovação.
mente perigosa.Comédia, disse-se? Convém dizer que, com Kaufman, a comédia nunca é explícita, mas é sempre explicitamente negra. "O Despertar da Mente" começa assim mesmo, com escancarada melancolia e o rosto de Jim Carrey que, sem a elasticidade habitual, parece ter descaído - é o que acontece quando há gravidade. Carrey é Joel Barish que, nesse Dia de S. Valentim, tolhido pela angústia e pela solidão, decide faltar ao emprego e vai parar a uma praia invernosa. Não é o único: daqui a nada há-de haver um par num lago gelado sob um céu de estrelas, daqui a nada ele vai ficar a chorar. É que Joel descobre que foi apagado da memória de Clementine (Kate Winslet), porque ela se submeteu voluntariamente a uma intervenção de amnésia selectiva na Lacuna Inc. Não há hipótese de reconhecimento e Joel não quer ser o único com as dores da lembrança: recolhe as memórias de Clementine e junta-se à fila de infelizes que esperam a sua vez de esquecer. Mas a meio de perder a cabeça, Joel arrepende-se e quer voltar para trás - já não pode, porque o processo está em curso e os lugares, objectos, imagens da memória começam a desaparecer. É quando o filme que está dentro da cabeça dele começa a medir forças com o que está de fora, e "O Despertar da Mente" abre espaço à virtualidade, transitando entre o real e o consciente.
Por aqui, era de imaginar o fácil recurso a proezas técnicas: é o que, até agora, se reconhecia a Michel Gondry, que nos seus videoclips e anúncios publicitários (o seu "spot" para a Levi's, em 1994, é o mais premiado de todos os tempos, facto consumado no "Guiness Book of Records") parece sempre obcecado com a busca de um novo efeito visual. Gondry é uma espécie de Mr. Gadget, o último de uma linhagem de inventores, um prestidigitador em permanente prospecção de truques. Os seus vídeos são um prodígio de dinamitação da narrativa em favor de malabarismos técnicos, jogando com estratégias especulares e caleidoscópicas. Foi assim que Spike Jonze resumiu o método de Gondry: "Ele põe o público a olhar para um sítio enquanto está a fazer o truque noutro". Por seu lado, Gondry, e todos aqueles que o clamam como "um génio", têm propagado a sua capacidade para tornar possível o impossível. "Limito-me a pegar numa ideia e a tentar puxá-la até ao extremo", diz ele, o que deixa antever pouco mais do que piscadelas de olho ao "state of the art".
Mas é preciso dizer que "O Despertar da Mente" é um trabalho de contenção. Mesmo não dispensando as bizarrias dos seus autores - o universo liliputiano e o brique-à-braque de Gondry ou a auto-humilhação crónica dos anti-heróis de Kaufman -, nunca se atreve fora dos limites do realismo e do "low-tech". Entre o interior e o exterior da cabeça de Joel Barish, entre o presente e o passado revivido, a transição é sempre encenada - é a palavra - com simples jogos de iluminação - as luzes apagando-se atrás de Joel à medida que ele sai da memória - e com as entradas e saídas das personagens delimitando a mudança de tempo (o "décor" é, muitas vezes, partilhado).
Por falar em contenção, Jim Carrey é envolvente no seu minimalismo e vulnerabilidade. Não é só a cabeça dele que arrisca desaparecer: são as contorções a que o seu rosto nos habituou. Numa composição de desespero surdo, Jim Carrey apaga-se a si próprio, da mesma forma que Kate Winslet, enquanto tempestuosa incendiária de paixões, parece escapar ao cânone da sua filmografia.
É ver como, mesmo no labirinto mais intricado, duas solidões correm sempre uma para a outra. Só que, neste caso, não se trata de um "boy meets girl", mas de um "boy meets girl again". Afinal, também era assim em "The Philadelphia Story/ Casamento Escandaloso" (1940), de George Cukor, em que Cary Grant e Katharine Hepburn, após o falhanço da primeira união, faziam o seu périplo de aprendizagem, entre peripécias e obstáculos, até voltarem a ser um par - mais perfeito, como se presume.
"O Despertar da Mente" é, portanto, um filme sobre a segunda oportunidade, uma calorosa "love story". Seria injusto reservar para Kaufman todas as expensas de autorismo. Ao que parece, nas medidas a adoptar após a frustração de "Human Nature", Gondry incluiu a necessidade de ser mais infiel ao argumentista. É o que talvez explique que "O Despertar da Mente" não vá desembocar no cinismo e cepticismo habituais nos "scripts" de Kaufman. E não se resiste a pensar que é Gondry quem o resgata, com o seu universo assumidamente regressivo: os seus videoclips evidenciam uma nostalgia e ingenuidade pueril de quem ainda brinca com Lego, como prova o grafismo de "Fell in love with a girl", dos White Stripes. É o regresso à infância, enfim, que servirá de refúgio ao par de "O Despertar da Mente", com Carrey a regredir em tamanho. O título do documentário incluído no DVD "The Work of Director Michel Gondry", sobre a genealogia deste menino-prodígio, é esclarecedor: "I've been 12 forever".