Coleccionador de neuroses

Nos anos 70, época em que a BD se dividia entre o "mainstream" (os super-heróis) e os resquícios do "underground" - então em decadência -, Pekar pegou na sua vida para proclamar a difusa fronteira entre realidade e autobiografia. Quis fazer mais do que exercer aborrecidas funções burocráticas num hospital e praticar uma das suas paixões, a escrita. E mostrar que a vida podia estar na realidade de qualquer um e ir ao encontro do que poucos se haviam lembrado: escrever "comic books" (para os quais convidou vários desenhadores, entre os quais Robert Crumb) sobre os pequenos nadas a que a vida se resume.

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Nos anos 70, época em que a BD se dividia entre o "mainstream" (os super-heróis) e os resquícios do "underground" - então em decadência -, Pekar pegou na sua vida para proclamar a difusa fronteira entre realidade e autobiografia. Quis fazer mais do que exercer aborrecidas funções burocráticas num hospital e praticar uma das suas paixões, a escrita. E mostrar que a vida podia estar na realidade de qualquer um e ir ao encontro do que poucos se haviam lembrado: escrever "comic books" (para os quais convidou vários desenhadores, entre os quais Robert Crumb) sobre os pequenos nadas a que a vida se resume.

Em 2001, data em que celebrou os 25 anos de "American Splendor" (inicialmente em autopublicação e depois, a partir da década de 90, lançada pela Dark Horse), parodiou uma das suas muitas referências literárias, James Joyce: "Retrato do Artista nos Seus Anos de Declínio" foi o título desse número especial, onde coabitam a provocação e a conciência de que nunca deixou de ser perdedor. Afinal, nunca teve dinheiro para contratar grandes desenhadores. Toda a sua vida lidou com "nerds" (a série de tiras sobre o quotidiano do hospital, desenhadas por Crumb em 1980, são exemplo). Teve um linfoma em 1991 (o que detalhadamente expôs na novela gráfica "Our Cancer Year", que terminou três anos mais tarde, em parceria com Joyce Brabner, sua companheira, e que foi desenhada por Frank Stack) ao qual sobreviveu. Em 2001, o cancro voltou a aparecer, teve de enfrentar novas sessões de quimioterapia, enquanto se encharcou em Prozac para combater a depressão. São momentos fugazes da vida de um homem banal, mas que dão um sentido globalizante ao que é material da sua obra.

bagagem de neuroses.

"American Splendor". Título paródico: a vida de Pekar não tem nada daquilo que poderia corresponder ao sonho americano. É um quotidiano onde impera a máxima "a vida banal é uma coisa complexa". Em lugar do escapismo visionário da BD da época, Harvey confrontou os leitores com a sua bagagem de neuroses e humilhações diárias - como estar num supermercado, coleccionar doentiamente vinis de jazz, não saber onde arrumar a tralha e sujidade -, mostrando-se em toda a sua mesquinhez e misantropia de homem banal.

Tudo lhe serviu de matéria a contar. Seja o seu encontro, em 1983, com Joyce Brabner, empregada numa loja de "comics" que um dia decidiu partir para conhecer alguém que lhe era próximo em espírito - Pekar "himself" -, ou um amigo chato que lhe aparece em casa ("Freddy visits for the weekend", em "American Splendor" nº 5, desenhada por Crumb, 1980).

Vindo da literatura, a sua paixão - pode ser feita a ligação à corrente "stream of consciousness", de James Joyce, que se centrava nos processos "interiores" inerentes à escrita, ou a escritores do "novo jornalismo", como Hunter S. Thompson -, Pekar conheceu a BD já adulto. Mas para a génese de "American Splendor" a figura de Crumb foi um mentor. Em 1972 travaram conhecimento numa venda de garagem. A Crumb, Pekar haveria de voltar, quatro anos depois, para lhe mostrar o seu projecto: narrativas na primeira pessoa de um coleccionar de neuroses que espelhavam também as suas opiniões em relação à sociedade americana. Traçou esboços para que Crumb desenhasse. O resultado surpreendeu-o. Nascia "American Splendor", projecto caseiro, de periodicidade anual. A sua influência é sentida, mais do que nunca, numa nova geração de autores da década de 90, como Joe Sacco ou os canadianos Joe Matt, Seth e Chester Brown, trio de autores que fez da leitura de cada número de "American Splendor" o roteiro para as suas obsessões individuais. Ou, no outro lado do Atlântico, autores francófonos como David B ou Fabrice Neaud, que, em "Journal", escreveu um diário íntimo sobre as suas deambulações pelas ruas de Angoulême em busca de um amor possível no seio da comunidade "gay" local.

Para além do seu habitual pessimismo, Pekar e "American Splendor" - que em 1987 ganhou o American Book Award - acabaram por ter o merecido reconhecimento com o filme que hoje se estreia, adaptação falsamente "biográfica" que faz uso de vários formatos: imagens reais de Pekar na actualidade juntas às da interpretação de Paul Giamati, que lhe mimetiza os gestos, ou imagens de arquivo, por exemplo que mostram as suas passagem cáusticas pelo programa "Late Nigth with David Letterman".

Para Letterman, Pekar era o "freak" de serviço. Estávamos em 1987 e era já presença regular no programa. Aos poucos, começou a não respeitar quem assistia. Nem próprio Lettermann, a quem acusou em directo de ser instrumento do poder da cadeia NBC, ligada a corporações militares. Pediram-lhe que se definisse: "Sou um estridente radical de esquerda", disse, sem se preocupar se estava a ser politicamente correcto ou não (uma série de histórias contaram esse percurso, delas sobressaindo títulos como "My Struggle with Corporate Corruption and Network Philistinism", de 1988, em "American Splendor", nº 13; desenhos de Joe Zabel e Gary Dumm). Letterman teimava em mostrá-lo como exemplo da decadência americana ("tragam a enfermeira", dizia ironicamente em "Está na hora de Harvey tomar a medicação" - "Grand Finale", desenhada por William Fogg).

Reinventando-se constantemente como personagem de BD, Pekar continua a ser aquilo que sempre foi - "outsider" de Cleveland (cidade sobre a qual Crumb disse que, se nela fosse obrigado a viver, há muito se "teria suicidado"). Mas agora as suas narrativas contam também histórias de terceiros. Inicialmente, relatou o percurso de outros deserdados emocionais, trazendo-os, involuntariamente, para a fama, caso de Toby, companheiro de trabalho, genuíno "nerd" americano, que de um dia para o outro se transformou em atracção da MTV. Recentemente, tem enveredado por outras biografias, algumas mais heróicas que a sua, outras menos: a correspondência com um autista, em "Transatlantic Comics", de 1998, e "Unsung Hero", biografia de um veterano do Vietname, ilustrada em 2002 por David Collier.

Nessa perspectiva, o filme trata Pekar como artista reencontrado, ele que se vê agora num novo papel: estrela de cinema. Pekar deve saber que o melhor que pode acontecer a um autor independente é a sua obra ser transposta para o ecrã. Ganha-se reconhecimento, e dinheiro. Harvey também não está agora tão cáustico: tem Danielle, filha adoptiva, para cuidar, e está imerso em escrever para BD biografias de músicos de jazz. Ou para o seu blogue.