O medo ao espelho
"Gritos 2" prossegue a desconstrução perversa dos códigos do filme de terror operada no original, transcendendo-a num discurso vibrante sobre a ideia da duplicação. Pelo caminho, Wes Craven ajusta contas com o passado.
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"Gritos 2" prossegue a desconstrução perversa dos códigos do filme de terror operada no original, transcendendo-a num discurso vibrante sobre a ideia da duplicação. Pelo caminho, Wes Craven ajusta contas com o passado.
Tal como muitos dos seus protagonistas, o cinema de terror é sobejamente dado às "ressurreições". Ao longo da sua história, tem sido injectado, de forma cíclica, sangue novo a fórmulas que se julgavam já "mortas e enterradas". Um dos exemplos mais curiosos (e inesperados) ocorreu em meados dos anos 90, numa altura em que, findo o "boom" da década anterior, a produção de filmes de terror era cada vez mais escassa e certos sub-géneros pareciam extintos.
À cabeça das espécies ameaçadas estavam os "slasher movies" - os filmes em que um qualquer psicopata (de preferência mascarado) esquarteja adolescentes não muito perspicazes -, que proliferaram durante algum tempo, após o sucesso comercial do incontornável "Halloween" de John Carpenter. Mas eis que surgia "Gritos" (1996) e o que se afigurava moribundo adquiria fôlego extra. À partida, mais do mesmo: "teenagers" perseguidos por um maníaco de faca em punho e disfarce inspirado no quadro de Munch, "O Grito". O desvio nascia então do facto de as personagens serem versadas em filmes de terror e portanto conhecedoras dos "clichés" e estereótipos do género, que surgiam assim expostos e comentados com suprema ironia. Nada de novo, mas tudo diferente.
Irrisão e tributo, catadupa de citações cinéfilas, neste jogo auto-referencial o lúdico e o terrífico entrelaçavam-se de modo entusiasmante. E se, por um lado, as "regras" (sexo, drogas e álcool como actividades proibidas) apareciam desmontadas, por outro, eram também homenageadas, prova de que o olhar, empático, era de respeito, não de snobismo elitista. Percebe-se, pois nos bastidores, a puxar os cordelinhos, estavam fãs (que, neste momento, se preparam para fazer o mesmo ao "filme de lobisomens" com "Cursed"): o argumentista Kevin Williamson, elevado a "wonder kid" instantâneo, e, acima de tudo, o veterano Wes Craven, realizador com lugar assegurado no panteão dos mestres do fantástico (apesar de alguns, por displicência ou simples falta de vista, teimarem em referir-se a ele como "John Carpenter dos pequeninos"...).
Aliás, todo o passado de Craven deixava crer que seria ele o timoneiro ideal para o projecto. Desde logo, a sua formação académica (tirou o mestrado em Filosofia e foi professor universitário de Inglês e Ciências Humanas) sempre potenciou uma reflexão, cuidada e inteligente, sobre o papel do medo e as possibilidades metafóricas do cinema fantástico, o que indiciava o perfil ideal para a concretizar plenamente o revisionismo pós-moderno presente no "script" irreverente de Williamson (e que até já tinha sido experimentado, de forma mais sisuda, pelo realizador em "Wes Craven's New Nightmare", de 94).
Além disso, após 25 anos de carreira, Craven (que, em 84, com o magnífico "Pesadelo em Elm Street", já derrubara os limites do modelo "slasher") sentia a necessidade de olhar para o espelho e demonstrar a consciência das convenções do filme de terror. E porque se fala de ironia, é irónico (e triste) que, num movimento de recuo, o sucesso de "Gritos" tenha originado uma catadupa de objectos ("Sei o que Fizeste no Verão Passado", "Mitos Urbanos"...) contentes em regurgitar material estafado, como se nada tivesse acontecido para trás...
Recriação e aumentoE, como tantas vezes acontece, uma história de sucesso deu lugar à sequela. Mas estas não são, por definição, produtos inferiores? Nem sempre, como se apressam a realçar os intervenientes (que agem e falam como se se soubessem dentro de um filme) em "Gritos 2" (1997), apontando exemplos mais ou menos pacíficos: "O Padrinho Parte II" e "Aliens". É apenas um dos muitos sinais do carácter auto-consciente de uma obra alucinante, que bem podia ser acrescentada a essas excepções. Porque se não for melhor do que o original, está no mínimo à sua altura, já que não se limita ao registo de paródia perversa, fazendo antes da própria ideia de sequela o tema central.
Ou seja, é o "2" do título que domina e tudo se reconduz à noção de duplicação (como se sabe, objectivo inerente às continuações cinematográficas). O programa é explicitado logo de início: num ecrã de cinema, passam imagens que se aproximam estranhamente da sequência de abertura antológica de "Gritos" (é "Stab", parodiante "filme dentro do filme"), ao mesmo tempo que, na sala, dois jovens negros (que, como os próprios referem, morrem invariavelmente nos filmes de terror...) são assassinados, mimetizando o que acontece na tela.
Recriação e aumento, e para a frente será sempre assim. Primeiro, porque há um assassino determinado em duplicar os acontecimentos de "Stab" (ou será de "Gritos"? ou de ambos?), numa espécie de sequela "real", o que possibilita a introdução de mais uma camada à sobreposição de "bonecas russas" que constitui a estrutura narrativa (assim, para além dos paralelos entre a "realidade" de "Gritos 2" e a matéria ficcionada dos vários filmes que lhe estão subjacentes, com o primeiro "Gritos" à cabeça, o capítulo original da série tem ainda direito a um eco adicional, no ecrã de "Stab"). Depois, não só as personagens adquirem os seus duplos, na pele dos actores que as interpretam no "filme fingido" (lógica que será aprofundada no mal-amado "opus" 3), como muitas das vítimas se apresentam aos pares...
Bastaria o já referido para aquilatar da inteligência e engenho do filme - onde visceral e intelectual coabitam em inusitada harmonia -, mas os seus méritos não se esgotam aí. A "mise-en-scène" exibe um rigor e elegância absolutos, a sátira a uma sociedade puritana mas paradoxalmente obcecada com a violência e a sua exploração mediática (afinal, morte e celebridade parecem andar a par) é corrosiva e, no meio de tudo, Craven ainda arranja tempo para um subtil ajuste de contas com o passado. Ao pôr um maníaco homicida a planear, como estratégia de defesa, declarar-se "vítima inocente" dos efeitos nocivos da violência no cinema, o realizador torna evidente, com extrema argúcia, o ridículo de uma tese motivadora dos cortes e violações que, ao longo dos anos, a sua obra foi sofrendo às mãos dos censores. A isto se chama uma (deliciosa) bofetada de luva branca.