A abertura das coisas secretas
"Lembro-me de um filme dos anos 30 com Barbara Stanwyck que contava mais ou menos a mesma história.", diz. Razão suficiente para desconfiar da própria intriga: se ela é simples, provavelmente o filme é um bocadinho mais complicado. Por essa afirmação, juramos nós.
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"Lembro-me de um filme dos anos 30 com Barbara Stanwyck que contava mais ou menos a mesma história.", diz. Razão suficiente para desconfiar da própria intriga: se ela é simples, provavelmente o filme é um bocadinho mais complicado. Por essa afirmação, juramos nós.
Brisseau dá-nos conta de um fenómeno curioso. Quando o filme se estreou em França houve, mesmo entre os admiradores, uma catalogação demasiado apressada. De filme "X" na esteira dos de Catherine Breillat ("Romance") - de resto, "Coisas Secretas" escapou por pouco a essa classificação, ficando, em França, "para maiores de 16 anos" - a variação paródica sobre o "Eyes Wide Shut" de Kubrick (é verdade que há uma sequência de "partouze" que faz lembrar, mas só isso), os rótulos foram vários. Mas, diz o realizador, "meses depois começou a haver reacções de muitas pessoas, inclusive críticos profissionais, que reviram entretanto o filme e me vieram dizer que a uma segunda visão tinham ficado com uma ideia completamente diferente". Houve até quem, continua, tivesse escrito mal de "Coisas Secretas" e depois feito um "mea culpa": "M. Brisseau, peço desculpa, revi o filme e apercebi-me de que é muito mais complexo do que pensei."
Não parece ser tanto por "gabarolice" que Brisseau nos conta isto como por uma genuína surpresa (e apreensão) quanto a interpretações que ele não esperava. Refere ainda o título, mostrando-se um pouco perplexo pela quantidade de associações entre "as coisas secretas" e o retrato da sexualidade feminina - "não mostro nada de extraordinário no meu filme, em todo o caso nada que me pareça que seja 'secreto'". Não é isso, com certeza. No filme surge, a dado passo (e é um momento que "abre" ainda mais a obra numa altura em que ela já está consideravelmente "aberta"), uma referência explícita às tais "coisas secretas". É quando Christophe, um herdeiro "monstruoso" (já voltaremos a ele), conduz uma das raparigas pelas salas do seu palácio, onde decorre uma enorme orgia - é a tal cena que traz o filme de Kubrick à memória mas, sobretudo, reenvia à mais que provável matriz da cena de Kubrick: a ideia de grande "mise-en-scène" sadiana, entre o dionisíaco e o demoníaco. É nessa altura, dizíamos, que Christophe recita: "E eu sou o nascimento de tudo e a morte de tudo e eu sou a bondade e a misericórdia e o silêncio das coisas secretas." É uma citação, diz Brisseau, extraída do Bhagavad Gita, evocação do Deus hindu que introduz um tom de misticismo pagão a um filme que já não parecia muito católico, ao mesmo tempo que reforça o desenho da personagem de Christophe - que é o último "obstáculo" a vencer pelas raparigas - como uma espécie de "super-homem" ou de "semideus".
marxista ou não marxista. Talvez já possa ter depreendido que uma das forças de "Coisas Secretas" é ser um filme que está sempre a "deslizar", a transformar-se noutra coisa e a escapar-se da mão do espectador. E um dos deslizamentos mais significativos é essa passagem dessa esfera do "social" (a história das duas arrivistas) para um âmbito que já só aparentemente é realista e que se aproxima bastante de uma espécie de "fantástico". Pretexto para voltar à questão dos "rótulos" na conversa com Brisseau. Talvez pegando numa velha "trademark" do cineasta (que se costuma definir como "marxista e cristão"), também se chamou "marxista" a "Coisas Secretas". Não nos parece nada, e ainda antes de explicar por quê Brisseau exclama "que o filme não é nada marxista".
"Pega, quando muito, num tema, a luta de classes, que está no centro do marxismo, mesmo que eu fale da luta de classes em termos que já não são os clássicos e me refira, por exemplo, às relações entre patrões e empregados."
Acrescentamos, com alguma timidez (o homem diz-se marxista, afinal de contas), que o filme nos parece demasiado cínico e desapossado dos elementos mais beatíficos do marxismo para poder ser "marxista", e Brisseau acrescenta, por sua vez, "que o filme também não tem a moral do marxismo nem tende para um 'fim' como o marxismo tende". Completamente de acordo - mesmo no mais delirante do seu rumo "político", chamemos-lhe assim, quando as duas miúdas começam, com as suas manobras de sedução, a virar de pantanas a textura do "tecido empresarial" da firma em que se empregaram, estamos mais próximos de um tom anarquista e libertário, onde a "corrosão social" vale por si própria. Se há alguma coisa de "marxista" em "As Coisas Secretas", será menos a ideologia do que a metodologia, a organização de uma estrutura de oposições e de relações de poder que tanto serve para focar a luta de classes como, por exemplo, as relações entre masculino e feminino. Perguntamos a Brisseau se já teve reacções de feministas; ele ri-se e diz que não, mas que teria "muita curiosidade".
filme escondido. Mas voltemos a Christophe - a personagem do herdeiro da firma, o homem que as raparigas precisam de derrotar para assumirem a vitória plena e tomarem o poder sobre o império empresarial que ele controla. Durante boa parte do filme, apenas ouvimos falar dele, sabemos que é um "playboy", sedutor inveterado que já conduziu dezenas de mulheres à loucura e ao suicídio, e sabemos que é um homem que aparentemente perdeu toda a capacidade de emoção quando, em miúdo, a mãe morreu e ele viveu uma semana com o cadáver dela em casa, obcecado pelas mutações que se produziam na sua "máscara de morte". Há um filme escondido em "Coisas Secretas", que é este filme de Christophe, do qual só ouvimos relatos, assim como desconfiamos de que ele é o protagonista escondido - Brisseau vai mais longe, diz que Christophe é "o verdadeiro protagonista".
Ilumina-se o tema da revolta. Se a revolta das raparigas é uma revolta social, política na melhor das hipóteses, a de Christophe é bastante mais funda - é a revolta "contra Deus, se ele existe", como Brisseau nos repete várias vezes, o desejo de ser "mais cruel do que a Criação", a blasfémia suprema. Quando o filme chega aos seus derradeiros vinte minutos, já não é nada do que parece ao princípio, transforma-se numa parábola (?) sulfurosa de tal modo caótica que, diz-nos o próprio realizador, nem ele tem "respostas para tudo".
Mas por essa altura já não deve haver rótulos que resistam ao poder destas "coisas secretas".