Deus e as máscaras de João César Monteiro

Augusto M. Seabra escreve sobre a obra integral de João César Monteiro.

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Esta texto foi publicado no dia 2 de Janeiro de 2004

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Esta texto foi publicado no dia 2 de Janeiro de 2004

A última imagem, o Olho, de quem é ele afinal? O Olho de Deus, que a todos e tudo vê? O olho de quem, já falecido, nos perscruta ainda? Ou o olho que nos olha nos olhos de espectador e nos vem então assim recordar que fomos parte da "experiência" cinematográfica?

Retomo o que escrevi sobre Vai e Vem, último filme de João César Monteiro e sobre o seu assombroso derradeiro plano; não há volta a dar-lhe, constato — vai-se e vem-se na obra e sempre se regressa à proeminência desse Olho. Independentemente de ser esse ou não um "filme-testamento", "è la finita la commedia". A obra está completa e agora editada em 11 DVDs. Mas, igualmente importante, as longas-metragens voltaram a ser exibidas, até ontem, em sala, em Lisboa, no King; por exemplo, e ao contrário do que supõe um lugar-comum da idiotice, Branca de Neve, a obra ao negro, só no negro da sala é apreensível.

Há, parece-me evidente, um dado que não deixa de ser problemático nesta consagração póstuma: justamente a "sagração" de quem se quis antes em transgressão. O dado estava todavia já presente no próprio estatuto do "César cineasta" e "personagem pública". Ele não tinha apenas criado uma "persona" cinematográfica, João de Deus, tinha também criado uma "persona" pública. Polemista temido, mas também adulado, Monteiro quis-se um marginal, "provocador". Como Sartre sobre Genet, alguém poderia sobre ele ter escrito um "Saint Monteiro, comédien et martyr". A hagiografia formulou-se e para isso será particularmente propícia esta operação. E, todavia, é mais complexo.

Passado o esplendoroso Pórtico que é Sophia (onde, bem vistas as coisas, já tantas das matérias estão), ocorrem em paralelo, e necessariamente em tensão, duas pulsões: uma, radica-se no primeiro projecto próprio, Quem Espera por Sapatos de Defunto, vindo já de 1967; o outro formula-se nas águas agitadas da revolução, em 1975, com Que Farei Eu Com Esta Espada?.

Nos Sapatos, Monteiro criou uma personagem inteiramente sua, Lívio, a que Luís Miguel Cintra deu corpo e ele, César, deu voz — e que haveriam de se reencontrar, muitos anos passados, em Recordações da Casa Amarela ("Tu não és o velho Lívio?", perguntará João de Deus/César). Ora Lívio é aquele que na demanda de uma Euridice que o não segue (Mónica, uma Paula que à época ainda se não chamava Bobone), terá de descobrir o seu próprio olhar de Orfeu, no fundo "le cinéma à venir".

É o momento da emancipação, que todavia suporá dois modos, o da enraivecida revolta, desde logo na obra seguinte, Fragmentos de um Filme-Esmola ou A Sagrada Família, e o da legitimação, a meu ver já presente em Que Farei Eu Com Esta Espada?, filme militante, "anti-imperialista", incentivador da tradicional palavra de ordem internacionalista, "Proletários de todos os Países, Uni-vos", mas também reactivador de uma figuração nacionalista, com o cruzado andrógino que empunha a espada, a pretexto de ser contra a Nato (e filme singularíssimo onde a referência a Nosferatu comparece-se pela primeira vez e um frontal testemunho de uma prostituta abre o catálogo da sexualidade oral no cinema de Monteiro).

Este desejo de legitimação (e reconhecimento?) é prosseguido, com as condicionantes do refluxo da revolução, precisamente num quadro nacional, em Veredas, os telefilmes de contos tradicionais, e Silvestre, operando sobre uma memória mítica do imaginário português. Como suponho que a obra sucessiva confirmará, a partir do decisivo Recordações da Casa Amarela, esse "invólucro" nacional não deixou de coarctar o que existe de mais irredutivelmente autónomo na obra de Monteiro. Um exemplo, apenas, para mim crucial: se vistos em confronto o tão aclamado Silvestre e o tão denegrido (negro justamente) Branca de Neve, torna-se patente que no primeiro o autor "perde" as duas personagens afinal mais "monteirianas", a meia-irmã (ilegítima?) e o peregrino transgressor.

"Eu é um Outro" 

Rimbaud

Uma das possibilidades do DVD é a da revisão de cenas específicas de um filme. Poderei assim agora dizer que se me afigura haver uma "cena capital" do cinema de César Monteiro (quiçá a mais próxima do afrontamento de uma "cena primitiva"), em Recordações da Casa Amarela, capítulos 23-28: João de Deus/César vai ter com a mãe que, humilde, faz trabalhos de limpeza (e é interpretada por Maria Ângela, viúva de Carlos de Oliveira, a mais persistente figura tutelar invocada no cinema de Monteiro — há também Sophia, mas a espaços); pede-lhe dinheiro, até os "trocos"; a música é o Stabat Mater de Vivaldi; na cena imediata, João passa frente a uma sala "porno", e ouvem-se vozes femininas discorrer sobre a prática de sexo oral.

A sequência sempre me impressionou, e agora todo o vai e vem entre os filmes confirma-me o seu relevo, desde logo como exemplo privilegiado desse nexo directo entre o sublime e a baixeza (a escatologia mesmo), o sagrado e a blasfémia, que são fulcrais ao cinema de César. De facto o encontro estava prenunciado desde bem cedo no filme: passado o prólogo, a primeira imagem é um altar com Nossa Senhora e o Menino, passando a João de Deus na igreja e logo depois outrem pergunta-lhe pela mãe: "Madre de Deus há só uma". Mãe de João, Madre de Deus. Acrescento, agora, que com a imagem da Senhora se ouve o "Andante" do Trio op.100 de Schubert. Figurava ele já, e disso nos lembraríamos, no final de Silvestre. Mas não só.

Desde que em 1988 recuperei para a Mostra de Pesaro os três Contos Tradicionais Portugueses (sobretudo por lembrança de Fernando Lopes, que enquanto director da RTP/2 os encomendara), sempre me foi óbvio que um deles, O Amor das Três Romãs veio a funcionar como esboço para Silvestre. Sobrevalorizando essa morfogénese, só agora me dou conta que outro, A Mãe, é de igual relevo. Anda de um lado para o outro o cadáver da mãe que no final surge como cavaleiro fantasma a um frade que foge espavorido — e dá-lhe corpo João César Monteiro. E a música desse telefilme, o "tema da mãe" se quisemos, é o "Andante" do Trio op.100.

Poderia falar também de como nessa espécie de "filme-fantasma" que foi Fragmentos de um Filme-Esmola, ou A Sagrada Família, que é esse o objecto do exorcismo, se há plano incandescente (e é único), de ténue nexo com o resto, é o de uma velha senhora num cenário de abandono que só exclama "ai meu filho!" — e é ela a mãe do cineasta. Ou que Veredas era originalmente designado Amor de Mãe. A constatação deste motivo é exemplo privilegiado das aproximações à obra, tal como agora a edição em DVD permite. Mas uma vez esse elucidado importa retornar à tal "cena capital".

Num texto sobre O Passado e o Presente de Manoel de Oliveira, César Monteiro declarou-se parte da família dos "cineastas católicos". Não tendo ele sido religioso, a afirmação pode parecer mais outra das suas provocações, mas talvez ela nos elucide que também foi um cineasta que se pensou na ligação ao sagrado e mais concretamente que, não obstante ter sido um iconoclasta, a sua relação com a iconologia foi afinal também da ordem da crença, e da encarnação mesmo.

Houvera, é certo, Sophia mas sobretudo Quem Espera por Sapatos de Defuntos que aliás será directamente retomado em Recordações da Casa Amarela ("Tu não és o velho Lívio?", pergunta João de Deus/César a quem sobreviveu do outro filme — Luís Miguel Cintra), como nesse convergem também motivos de Que Farei Eu Com Esta Espada? (a invocação de Nosferatu, tomando ainda uma significação alegórica de todo diferente) ou de outros filmes. É verdadeiramente quando César se torna corpo do seu cinema, tomando a máscara de João de Deus, que a sua singularidade desabrocha — sabíamo-lo, mas a evidência desse fulgor nunca terá irradiado tanto como agora que a obra se nos oferece na sua finitude material.

Bastará a observação da recorrência do motivo da mãe para confirmar quanto a directa "experiência do vivido" informa o cinema de César. É quando o seu Eu se coloca no centro mas também se faz um Outro, um outro João, de Deus, que Orfeu encontra o canto demandado desde Os Sapatos. A mais funda experiência pessoal e a arte fundem-se em carne viva nesse nexo directo entre o sublime e a baixeza, mesmo o sagrado e a escatologia — como o Stabat Mater e a "oralização" do sexo.

A máscara tornar-se-á também omnipresente e devoradora, fauno rodeando-se de garças e ninfetas, disso sendo sinais a indolência e mesmo o auto-comprazimento de O Último Mergulho (não obstante o plano dos girassóis, indício de uma transfiguração possível) ou a armadilhada comédia das próprias máscaras que é Le Bassin de John Wayne (não obstante um sintomático desejo letal da própria figura); ou mesmo o bloqueamento que ocorre em Branca de Neve que, contudo, será coerente com o conto do suicida Walser "encenado" (a obra ao negro para o conto daquela que "como imagem insensível gostaria de estar deitada no caixão aberto"). Será finalmente ainda com uma outra máscara, a do João Vuvu de Vai e Vem, que César se reencontrará para além de João de Deus.

"È finita la commedia". Vai e vem — e é o olho derradeiro que se abre para a invocação de Dreyer, a música de Bach e o plano de Sophia. Era o princípio das coisas e o anúncio da beleza.