Tempos Modernos

"Playtime" é uma crítica à alienação provocada pela tecnocracia e pelo consumo que, como em outras capitais do mundo ocidental, se faziam sentir expressivamente na Paris dos anos 60.

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"Playtime" é uma crítica à alienação provocada pela tecnocracia e pelo consumo que, como em outras capitais do mundo ocidental, se faziam sentir expressivamente na Paris dos anos 60.

O mundo da automatização, o excessivo mundo da dependência automóvel e dos outros electrodomésticos, o mundo das relações mediadas pela mecânica, dos desencontros provocado pelas relações formais e burocráticas, dos funcionários e dos "executivos" e dos seus tiques de classe, num cenário metodicamente expurgado de todas as manifestações de vida, depurado, clínico, desinfectado (os quatro ou cinco planos iniciais, colhidos no que reconheceremos depois ser o Aeroporto de Orly, parecem passar-se num irrepreensivelmente higiénico hospital).

É um filme que caricatura a pretensão racionalista de que a organização metódica dos seres humanos, dos seus comportamentos e da sociedade em geral, seria possível e (pior que tudo), altamente desejável, no sentido da "eficácia produtiva". (Ainda hoje, em toda a parte, como em "Playtime", guias turísticos se esforçam por conduzir/encarreirar grupos de visitantes, identificando-os com chapolas, fazendo-se notar com sombrinhas exóticas, arriscando ataques de nervos a cada controlo engatado ou exasperando-se por cada ovelha ligeiramente tresmalhada no dobrar de uma esquina da cidade).

É essa programação obsessiva, que não tem grande (ou nenhuma) vontade de deixar espaço ao improviso, ao imprevisto, às emoções ou aos erros, que Tati retrata, fazendo ecoar a estranheza do som da queda de um prosaico guarda-chuva no irrepreensível pavimento do seu sofisticado aeroporto.

É também, e sobretudo, para uma concepção ultra tecnocrática do mundo que nos chama a atenção, uma concepção-território-de-poder que para tudo exige "aprendizagem" e que exclui todos os que não se conformem ou adaptem: os velhos, os que não sabem inglês, os que recusam ou ignoram aquelas regras, os que tão só não querem usar os mecanismos abnegadamente construídos para lhes "facilitar" as próprias vidas.

M. Hulot é (mais uma vez) um desses.

[Um homem que, se se distrai, poderá ser "engolido" num elevador perdendo-se noutro piso, poucos segundos depois; que não compreende porque se tem que usar o telefone quando se está a poucos metros do desejado interlocutor; que bate com o nariz nos planos de vidro transparentes que medeiam os espaços uniformizados (mesmo os "iniciados" o virão a fazer); que tem dificuldades em se esgueirar por entre os automóveis estacionados; que não "sabe" sair através da caixa de um supermercado; que perde tempo a auxiliar um bêbado a encontrar um caminho; que confunde uma feira de "design" com o átrio de espera de um edifício de escritórios; que não entende porque se hão-de dar outros nomes às mesmas coisas ("drugstore","night-club", "supermarket", "playtime"); um homem que não tem um caminho, um rumo, mas antes deriva - aventureiro -, atrás de amigos, brilhos, sons, sensações, acontecimentos, maravilhamentos].

A longuíssima (quase um filme autónomo dentro do filme), cena do restaurante, é esta caricatura, esta agudíssima denúncia.

O restaurante/ "night-club", no dia da inauguração: poderia ser "Os irmãos Marx no restaurante" - o registo é semelhante - e veríamos Goucho e os outros em mil peripécias à roda do tema.

[Contraditoriamente, Jacques Tati é muito menos explosivo que aquilo a que nos habituaram "os três estarolas". As suas cenas são também burlescas, mas rigorosamente encenadas e todos os múltiplos efeitos são estudados de modo a compor um mosaico tão rico de pormenores, concatenações e responsabilidades, com um rigor técnico tão perfeito e coordenado, que nos fazem duvidar dos espaços de improviso que reservasse para os seus filmes]

A cena do restaurante é tão magnífica que lhe perdoaremos o registo ligeiramente menor com que sai tratado o arquitecto (uma figura que melhor colaria à de um encarregado de obra, responsável pela execução da decoração mas também pelas instalações eléctricas ou de ar condicionado, pela fixação dos pavimentos ou pela pintura das cadeiras, que corre a noite toda de um lado para o outro registando as críticas, os desaires e falando sozinho enquanto o espaço vai ficando mais e mais cheio de clientes e problemas).

No restaurante nem a magnífica banda de jazz resiste à anarquia que se instala quando Hulot inadvertidamente faz desprender-se um tecto falso e, com ele, um bocado de parede, "construindo" um canto mais imprevisto e impuro no meio da lógica e do "design" de origem. É nesse canto, rapidamente em auto-gestão, que despontará um troço de vida mais autêntico, sem uma tão artificial distinção dos diversos papéis sociais, com uma turista sensível a tocar piano, uma velha cantora já retirada a refazer os seus êxitos, os trolhas até então escondidos, a beberem com os clientes, o mestre-sala (quase) apaziguado e sem "stress". A generosidade de Tati faz contagiar da alegria do canto "destruído" o restante da sala e a festa instala-se, solta, desprendida, um pouco caótica, ao contrário do que pudesse ter sido imaginada mas a contento de todos, transeuntes ocasionais atraídos pelos magnífico anúncio minimalista em néon sob a pala de entrada ou o velho porteiro, agarrado ao puxador de uma (já só) imaginária porta de vidro.

E o que poderia ter sido uma qualquer atracção fácil por uma lição maniqueísta, acaba numa maravilhosa madrugada em que a cidade (nova) acorda e se vê invadida por uma saudável "bandalheira" popular (o homem que aldraba o polícia para poder namorar a caixa do "drugstore", os bêbados do "night-club" que atacam o balcão do bar, os operários a lerem os jornais da manhã, os vendedores de legumes, os varredores de rua, os carros do lixo e dos jornais, os electricistas e os canalizadores, o padre, os condutores de comboios e o regresso tímido da cor ao que até aí navegara num lindíssimo cinzento prata).

O supermercado que transborda para a rua, parece uma feira, em quase esquecimento dos seus mecanismos de controlo e operacionalidade - é o princípio (ainda frio) da alegoria final, sucedendo-lhe o lenço que Hulot oferece à turista com os monumentos de Paris que ela só vira reflectidos nos vidros em movimento dos planos/portas dos edifícios modernos.

No lenço, rodam à volta os monumentos, como os carros rodam à volta de uma rotunda transformando-a num polifacetado carrossel, mais as pessoas, as motas, os balões, as carrinhas de cebolas, as crianças com chapéus e bandeiras, as famílias de emigrantes. Um automobilista põe mais uma moeda no parquímetro e o carrossel recomeça, nos vidros e nos reflexos "sobem e descem" os turistas e sobem as gruas em direcção aos candeeiros altos ("iguais aos nossos"); aparece ainda uma flor verdadeira, igual aos candeeiros. Noite, vamos para Orly.

Não sei se Jacques Tati tem uma relação ligeiramente equivocada com a arquitectura moderna ou se seremos nós a ter uma ideia ligeiramente equivocada àcerca da relação de Jacques Tati com a arquitectura moderna.

O que Tati critica, ridiculariza e põe a nu, são determinados tiques, muletas, recursos de uma certa arquitectura moderna - o chamado International Style -, apanhada pela burocratização, limpa de ambiguidades, uma arquitectura que procura num qualquer fascínio tecnológico a sua própria razão de ser e, arrogante, impõe a tudo e a todos, um só modo, uma só maneira, esquecendo-se do espaço aberto aos novos e não programados usos que os homens sempre hão-de descobrir e inventar; privilegiando a pose, o "design", a encenação e esquecendo-se da vida. Endeusando a funcionalidade e, então, achando-se "funcional", propondo esse funcionamento unívoco à complexidade das relações interpessoais, à complexidade das relações humanas.

Claro que Jacques Tati diz coisas aparentemente românticas como "no final já não fica de pé nenhum ângulo recto"; "ângulo recto" é também uma metáfora. Uma metáfora que recusa essa programação que sente começar a cercar as cidades, com o triunfo das teses mais mecânicas que a modernidade também produziu. Não penso que advogasse um mundo de gestos curvos, mas é fácil imaginar que se sentiria próximo de modos mais orgânicos, por contraste com a suposta racionalidade do "Estilo Internacional". [(Em "Mon oncle", irrita-nos, por vezes, com o "irracional" dos seus percursos, na casa onde vive, para no-los fazer comparar com a igualmente irracional casa (moderna) da irmã/cunhado].

A modernidade na arquitectura não pode ser um estilo, ou uma repetição, ou uma burocrática variação de elementos iguais.

Um enorme plano de vidro é uma conquista tecnológica demasiado interessante para poder ser rejeitada apenas porque o seu uso (ou abuso) nos pode conduzir a espaços confusos ou transparentes de mais ou simplesmente desajustados. Não poderíamos dizer o mesmo do milenar "tijolo"? Que com tijolos a história da arquitectura escreveu espaços e edifícios sublimes mas também edifícios monstruosos, medíocres ou ridículos?

Com pedra, vidro, tijolo, madeira ou betão, a arquitectura materializa-se; mas serão sempre a intencionalidade, a autenticidade e a adequação que deverão ser valoradas e não uma qualquer esquizofrenia tecnológica; dito de outra maneira, os materiais inventaram-se, descobriram-se, produziram-se, para estar ao serviço do homem e não para que o homem ficasse ao seu serviço. E esta lição, dá-no-la também Jacques Tati, no domínio mesmo do seu "media", ao rodar em 70 mm e com quatro pistas de som, sem medo que essa conotação tecnológica lhe pudesse vir a fazer colar "Playtime" a um qualquer "produto" comercial de pendor mais tecnocrático.

O mais interessante na construção dos décors que servem de base à comédia que Tati filma ("não contratei 'estrelas', a minha 'estrela' foi o cenário"), é que a espacialidade que evocam é de uma tal elegância, rigor e sofisticação modernas, que correm o risco de nos fazer ignorar a crítica que por lá perpassa.

A sala de espera do aeroporto, o quarto de hotel, o restaurante (com exclusão das cadeiras, um bocadinho "medonhas", que precisavam no entanto de uma caracterização forte já lhes estava reservado um papel determinante na acção), são situações de enorme contenção estilística e de uma tão acertada construção (escala, proporções) de ambientes que ficam (provavelmente) como as propostas cenográficas mais radicais e expressivas do discurso cinematográfico daquela época, sem ingenuidades "futuristas" ou design datado (poderíamos bem com as críticas à arquitectura corrente contemporânea se fossem daquele tipo os exemplos com que nos confrontamos diariamente).

O que talvez diga muito de um vocabulário não suficientemente explorado em todas as suas imensas potencialidades, e de um modo arquitectónico - o moderno - que, desde que não se leve demasiado a sério, poderá ainda certamente acompanhar a vida e a complexidade da vida durante muitas décadas: tempos modernos.

* Arquitecto

Dest

Não sei se Jacques Tati tem uma relação ligeiramente equivocada com a arquitectura moderna ou se seremos nós a ter uma ideia ligeiramente equivocada àcerca da relação de Jacques Tati com a arquitectura moderna. O que Tati critica, ridiculariza e põe a nu, são determinados tiques, muletas, recursos de uma certa arquitectura moderna - o chamado International Style -, apanhada pela burocratização, limpa de ambiguidades, uma arquitectura que procura num qualquer fascínio tecnológico a sua própria razão de ser e, arrogante, impõe a tudo e a todos, um só modo, uma só maneira, esquecendo-se do espaço aberto aos novos e não programados usos que os homens sempre hão-de descobrir e inventar.