Vinte anos depois

Sob a forma de uma divertida e corrosiva "sitcom", encenavam-se, recorrendo a personagens-tipo (o macho-garanhão, a ninfomaníaca, o homossexual, o "hippie" marginalizado, a mulher dedicada), que se iam complexificando, as pequenas traições e os jogos de sexo cruzados com interrogações à razão de viver num tipo de crise de valores e de mudança de paradigmas. Filme "tagarela" por excelência, "O Declínio do Império Americano" dividia as personagens em dois segmentos narrativos, arrumados por sexos: os homens preparam uma refeição requintada, numa casa de vilegiatura; as mulheres falavam num ginásio, microcosmos por excelência do feminino - desde a experiência limite de "The Women", de George Cukor. Em ambos os casos, o tema passa obsessivamente pelas experiências sexuais, pelos medos e pelas traições que cada um deles cometeu ou deixou cometer.

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Sob a forma de uma divertida e corrosiva "sitcom", encenavam-se, recorrendo a personagens-tipo (o macho-garanhão, a ninfomaníaca, o homossexual, o "hippie" marginalizado, a mulher dedicada), que se iam complexificando, as pequenas traições e os jogos de sexo cruzados com interrogações à razão de viver num tipo de crise de valores e de mudança de paradigmas. Filme "tagarela" por excelência, "O Declínio do Império Americano" dividia as personagens em dois segmentos narrativos, arrumados por sexos: os homens preparam uma refeição requintada, numa casa de vilegiatura; as mulheres falavam num ginásio, microcosmos por excelência do feminino - desde a experiência limite de "The Women", de George Cukor. Em ambos os casos, o tema passa obsessivamente pelas experiências sexuais, pelos medos e pelas traições que cada um deles cometeu ou deixou cometer.

Quando estreou, o filme encaixava numa apetência para o uso da estrutura em mosaico da "sitcom", enquanto meio de reconhecimento e de questionação do real. Séries como "Os Trintões", por exemplo, viriam a estabelecer modelos que traçavam curiosas pontes entre o cinematográfico e o televisivo, em tempo de admissível contaminação.

Quase vinte anos depois, "O Declínio..." mantém muito do seu fascínio original, sobretudo porque lança sobre questões sérias um olhar sarcástico e iconoclasta. Os quatro homens desenham um irónico quadro de conjunto do mundo académico nas margens idílicas e elegíacas do lago Champlain: Rémy, casado e infiel, professor de História, que foi para a cama com muitas das alunas e com quase todas as amigas do casal; Pierre com uma namorada que conhece em circunstâncias estranhas, num salão de massagens, misto de bordel; Claude, um homossexual algo estereotipado; Alain, um jovem "aprendiz de feiticeiro".

Justifica-se a reposição, na medida em que a estreia de "As Invasões Bárbaras" (2003), do mesmo Arcand, vem proporcionar o reencontro com as mesmas personagens, no momento em que os "bárbaros" entraram em "Roma/Nova Iorque", no dia 11 de Setembro, acontecimento focado de forma fortuita num ecrã de televisão, no ambiente do hospital, em que Rémy agora espera a morte, vítima de um cancro. Para a sua morte quase ritual, convocam-se as personagens vindas do passado, envelhecidas e mais cínicas. Há figuras novas, a do filho de Rémy (com a namorada francesa), representante das novas mentalidades e triunfador das novas tecnologias, bem como a filha de Diana, o seu oposto, "derrotada" pela droga e pela inadequação à mudança dos tempos (Marie-Josée Croze - ver entrevista ao lado). Claude regressa, com o namorado italiano, de um exílio dourado em Roma. Pierre aparece com uma mulherzinha burra e doméstica e os respectivos filhos.

A reunião problematiza a agudização dos conflitos sociais: a Mafia dos sindicatos locais a dominar um mal resolvido serviço de saúde, uma hipócrita política de controlo policial do consumo de drogas, uma igreja Católica em queda livre, obrigada a vender os seus bens ao desbarato e sem soluções para a crise da fé.

uma infinita tristeza.

Como na "sequela", o centro de "As Invasões Bárbaras" passa por um discurso paródico (mais cínico ainda) sobre a economia dos sentimentos, Contesta-se quase tudo, da crença em Deus à crença no amor, tão diferente do que acontece nas letras das canções. E quando as personagens falam, a propósito dos textos de Jacques Brel ("Quand On a que l'Amour" ou "Ne Me Quittes Pas", são os exemplos), ele próprio representativo de um irredutível cepticismo, o "iluminado" tradutor português (sinais dos tempos!) trata a "chanson populaire" por "música pimba".

Da truculência dos diálogos com uma divertida referência, entre muitas outras citações, ao erotismo místico do filme de Genina sobre Santa Maria Goretti, "Céu sobre o Pântano", apropria-se do filme uma infinita tristeza. Na comovente marcha para a morte com a dignidade de quem ainda se sente capaz do riso, revisitamos os locais do antigo "esplendor na relva", assistimos ao pudor dos sentimentos dos que vieram para a grande despedida. É a saída lenta de cena da geração dos "ismos", dos que lêem livros e fazem da cultura frágil (mas ágil) moeda de troca.

A coragem final de defender a eutanásia no contexto problemático de um catolicismo em crise, acrescenta a este olhar desencantado sobre a nossa breve passagem pelo mundo um adicional tom de dignidade ferida pelas circunstâncias. Filme fora das modas, com tempo para pensar e para ser inteligente (e terrivelmente divertido), "As Invasões Bárbaras" tal como o seu parceiro "O Declínio do Império Americano" desmistificam a própria ideia da "sitcom" como suporte de consumo fácil. Sobretudo neles encontramos o espelho da nossa frágil "humanal condição". E não é pouco.