Proposta nova explicação para o terramoto de 1755
Durante vários dias, um grande incêndio destruiu o que é hoje a Baixa Pombalina. Quase 250 anos depois, ainda são muitas as interrogações. Onde foi o epicentro do sismo? Ou como interpretar os relatos da época, que parecem contraditórios? Cientistas do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, propõem uma nova explicação para o terramoto de 1755, na revista norte-americana "Bulletin of the Seismological Society of America". Dizem que houve dois sismos quase ao mesmo tempo.
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Durante vários dias, um grande incêndio destruiu o que é hoje a Baixa Pombalina. Quase 250 anos depois, ainda são muitas as interrogações. Onde foi o epicentro do sismo? Ou como interpretar os relatos da época, que parecem contraditórios? Cientistas do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, propõem uma nova explicação para o terramoto de 1755, na revista norte-americana "Bulletin of the Seismological Society of America". Dizem que houve dois sismos quase ao mesmo tempo.
A equipa do sismólogo João Fonseca, da qual fazem parte as estudantes de doutoramento Susana Vilanova e Ana Catarina Nunes, vasculhou os relatos da época. Serviram-se do inquérito ordenado pelo Marquês de Pombal, que por sinal foi o primeiro feito com bases científicas e marcou o nascimento da sismologia moderna.
Enviaram-se perguntas, de resposta obrigatória, para todos os párocos do país. "As perguntas estavam muito bem feitas. Por exemplo, quanto tempo durou?, o que foi observado nas fontes, nos rios e terrenos?, foram sentidos outros terramotos a seguir?, houve danos na paróquia?", conta João Fonseca. "As respostas permitem ainda hoje investigar com bastante rigor o que aconteceu, porque os párocos eram pessoas cultas."
Os inquéritos que chegaram até hoje estão na Torre do Tombo, em Lisboa. Mas, em 1919, o tenente-coronel Francisco Luiz Pereira de Sousa, que era engenheiro e foi assistente da Universidade de Lisboa, publicou uma compilação dos inquéritos e de diversos textos da época descritivos do sismo, como cartas de pessoas ligadas à Igreja e relatórios de conventos da região de Lisboa. Este trabalho também serviu de fonte.
Usaram-se ainda outros trabalhos. Um de 1756, de Moreira Mendonça, com informações científicas sobre o sismo, e outro de 1758, que é um inquérito genérico às paróquias, organizado pelo padre Luís Cardoso. Os relatos de comerciantes ingleses em Lisboa, que tiveram de enviar relatórios para as suas empresas em Inglaterra, foram outra maneira de ter descrições do terramoto. "Esses documentos foram até publicados na imprensa inglesa da época. E usámos também relatórios de comandantes de navios mercantes ingleses que estavam no Tejo."
De todas estas fontes ressaltavam algumas contradições. Embora continue sem se saber ao certo o sítio do epicentro, as enormes vagas oceânicas que produziu - o "tsunami" - não só indicam que foi no mar como bastante longe de Lisboa. "O 'tsunami' levou cerca de uma hora e meia a propagar-se desde o epicentro até Lisboa", explica João Fonseca. Por outro, a intensidade extremamente alta do sismo na região de Lisboa sugere um epicentro próximo.
Nos anos 70, pôs-se a hipótese de o epicentro ter sido no Banco de Gorringe, a sudoeste do cabo de São Vicente e a 350 quilómetros de Lisboa. A hipótese surgiu porque foi naquele banco - uma estrutura alongada, com cerca de 100 quilómetros, que fica a uns 50 metros de profundidade, numa zona que atinge mais de 3000 metros - que teve origem o sismo sentido em Lisboa em 1969. Mas, sublinha o sismólogo, é difícil explicar tanta destruição na zona do Vale Inferior do Tejo com um epicentro tão distante.
Assim, nos anos 90, cientistas do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa, da equipa de Luís Mendes Victor e de Miguel Miranda, e do Instituto de Geologia Marinha de Bolonha, em Itália, da equipa de Nevio Zitellini, propuseram um epicentro alternativo em falhas mais próximas da costa. Continuam a ser no mar, porque houve um "tsunami", mas mais perto, a cerca de 100 quilómetros, em frente à costa alentejana, para explicar os efeitos tão grandes na região lisboeta.
Sismo causa sismoMas outras aparentes contradições ressaltam dos relatos da época. O pároco de Benavente descreveu que, numa zona próxima, os barcos que flutuavam no Tejo ficaram em seco e a terra subiu dos dois lados do rio. Sugere, assim, que houve uma deformação do terreno, tal como os registos cartográficos mostram alterações substanciais do rio entre Benavente e Vila Franca de Xira. Também um dos comandantes ingleses disse que viu os navios nas docas serem arrastados para a água, em direcção à barra, o que sugere, de novo, deformações no rio. "Isto aconteceu imediatamente depois do sismo e antes da chegada do 'tsunami'."
Ora, relatos como estes levaram a equipa a pensar num segundo sismo, em terra, no Vale Inferior do Tejo, pouco depois do primeiro, no mar. "A deformação do terreno só acontece próximo do epicentro", diz João Fonseca. "Se fosse um sismo a 300 quilómetros, não haveria deformações permanentes."
A ideia de um segundo sismo é ainda corroborada, segundo a equipa, por descrições estranhas. "Muitos relatos dizem que o sismo durou oito minutos, mas teve paragens pelo meio, o que sugere que houve mais do que um. Nenhum sismo dura oito minutos. No máximo, dura dois", refere. "E percebe-se que há sugestões de que o segundo sismo terá sido mais próximo: dizem que foi mais curto e que a vibração foi mais veemente."
Este segundo sismo, que terá atingido uma magnitude de 6,5 a 7,0 na escala de Richter, não apareceu do nada. Primeiro, por volta das 9h30, deu-se um sismo no mar, com uma magnitude de 8,5 na escala de Richter. Seis a sete minutos depois, aconteceu outro na Falha do Vale Inferior do Tejo, que, de resto, é responsável por importantes sismos como o de 1531, em Lisboa, e o de 1909, em Benavente. "O primeiro sismo terá induzido a ruptura de uma falha que foi responsável pelas intensidades extremas sentidas nesta zona."
Esta proposta parte da ideia de que uma falha geológica, mesmo sem continuidade e separada por distâncias consideráveis, pode desencadear um sismo noutra falha. A primeira vez que se observou um sismo induzido foi em 1992, na Califórnia. "Até aí, havia grande relutância em aceitar que um sismo podia causar outro à distância."
Foi esse modelo explicativo que a equipa aplicou ao terramoto de 1755. Simulou o primeiro sismo a distâncias tão grandes como 350 quilómetros de Lisboa, no Banco de Gorringe, e viu que aquele poderia ter sido induzido uma ruptura na Falha do Vale Inferior do Tejo. O Banco de Gorringe pode ressurgir, assim, como candidato ao terramoto de 1755.