Feitiço

Eis portanto um caso - raro - em que para dizer mal de um filme português será preciso encontrar outros argumentos para além da sacrossanta questão do "dinheiro dos contribuintes". Ou mais a sério: eis um filme que deseja existir "ao lado", e que faz o possível para, efectivamente, existir "ao lado". Parecendo que não, é uma questão que impõe alguma diferença de argumentação aos mais negativistas discursos habituais sobre o cinema português. E o que é que isto nos diz sobre "Altar"? Nada, a não ser que quem deseja verdadeiramente ser livre inventa uma maneira de o ser - em parte, o filme é sobre isso, e no todo é a sua completa manifestação. De resto, "Altar" nem é bem um "filme-filme", antes (para usar uma facilidade de expressão) um trabalho "experimental" em vídeo, feito de colagens (de imagens, de textos, de sons), num bricabraque poético que não é nem de longe nem de perto o tipo de objecto (português ou estrangeiro) que costume encontrar um caminho aberto para as salas de exibição comercial. Nesse contexto trata-se mesmo de um perfeito alienígena, que não tem a ver com nada que possa ser encontrado nos cinemas de exibição dita "normal". Como já acontecia no filme anterior de Rita Azevedo Gomes, "Frágil Como o Mundo", e aqui acontece de modo ainda mais acentuado (uma vez que nem sequer se pressente a necessidade de ter uma narrativa, mas apenas de contar uma história), "Altar" junta materiais e referências diversas para uma colagem que tem alguns momentos encantatórios. O centro do filme, o seu "leitmotiv", é a presença do actor René Gouzenne a dizer excertos de um conto de Herman Hesse, a que se juntam diversas evocações pictóricas e musicais, bem como outras literárias (outra vez versos de Sophia, por exemplo). Na maneira como o vídeo é usado, no modo como as imagens se ligam e se sobrepõem umas às outras (e mais que tudo, na maneira como Rita Azevedo Gomes filma a pintura), notar-se-ia, mais do que qualquer outra, a influência de Godard (e não apenas do Godard "em video"). Mas, numa perspectiva geral, e até por algumas confluências em termos de "universo", é mais uma vez o cinema de Werner Schroeter que nos salta ao caminho como grande referência (poética e formal, talvez mais a primeira do que a segunda) do trabalho de Rita Azevedo Gomes. Num filme em "fluxo", espécie de longo "encanto", o único risco (dando de barato que o "encanto" funcionou para o espectador nalgum momento) é que o feitiço se quebre a dada altura. Será o problema de "Altar" - uma meia hora inicial realmente encantatória, mas depois uma sensação demasiado nítida do tempo, como se o filme não encontrasse maneira de sustentar a sua aura até ao fim, e a repetição se desse a ver apenas como tal, como repetição. Dito isto, quem procura coisas "diferentes" não vá mais longe: não encontra igual a isto.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Eis portanto um caso - raro - em que para dizer mal de um filme português será preciso encontrar outros argumentos para além da sacrossanta questão do "dinheiro dos contribuintes". Ou mais a sério: eis um filme que deseja existir "ao lado", e que faz o possível para, efectivamente, existir "ao lado". Parecendo que não, é uma questão que impõe alguma diferença de argumentação aos mais negativistas discursos habituais sobre o cinema português. E o que é que isto nos diz sobre "Altar"? Nada, a não ser que quem deseja verdadeiramente ser livre inventa uma maneira de o ser - em parte, o filme é sobre isso, e no todo é a sua completa manifestação. De resto, "Altar" nem é bem um "filme-filme", antes (para usar uma facilidade de expressão) um trabalho "experimental" em vídeo, feito de colagens (de imagens, de textos, de sons), num bricabraque poético que não é nem de longe nem de perto o tipo de objecto (português ou estrangeiro) que costume encontrar um caminho aberto para as salas de exibição comercial. Nesse contexto trata-se mesmo de um perfeito alienígena, que não tem a ver com nada que possa ser encontrado nos cinemas de exibição dita "normal". Como já acontecia no filme anterior de Rita Azevedo Gomes, "Frágil Como o Mundo", e aqui acontece de modo ainda mais acentuado (uma vez que nem sequer se pressente a necessidade de ter uma narrativa, mas apenas de contar uma história), "Altar" junta materiais e referências diversas para uma colagem que tem alguns momentos encantatórios. O centro do filme, o seu "leitmotiv", é a presença do actor René Gouzenne a dizer excertos de um conto de Herman Hesse, a que se juntam diversas evocações pictóricas e musicais, bem como outras literárias (outra vez versos de Sophia, por exemplo). Na maneira como o vídeo é usado, no modo como as imagens se ligam e se sobrepõem umas às outras (e mais que tudo, na maneira como Rita Azevedo Gomes filma a pintura), notar-se-ia, mais do que qualquer outra, a influência de Godard (e não apenas do Godard "em video"). Mas, numa perspectiva geral, e até por algumas confluências em termos de "universo", é mais uma vez o cinema de Werner Schroeter que nos salta ao caminho como grande referência (poética e formal, talvez mais a primeira do que a segunda) do trabalho de Rita Azevedo Gomes. Num filme em "fluxo", espécie de longo "encanto", o único risco (dando de barato que o "encanto" funcionou para o espectador nalgum momento) é que o feitiço se quebre a dada altura. Será o problema de "Altar" - uma meia hora inicial realmente encantatória, mas depois uma sensação demasiado nítida do tempo, como se o filme não encontrasse maneira de sustentar a sua aura até ao fim, e a repetição se desse a ver apenas como tal, como repetição. Dito isto, quem procura coisas "diferentes" não vá mais longe: não encontra igual a isto.