Fellini, sempre vivo
A fortuna crítica de Federico Fellini esteve sempre à mercê de estranhas flutuações. Quando Portugal era o maior importador mundial de cinema italiano, nos tempos áureos do neo-realismo e nos anos que se lhe seguiram, já o universo felliniano dividia as hostes: "La Strada" (1954) e "As Noites de Cabíria" (1957) possuíam suficientes atractivos para justificar a recuperação social, de modo a que os traços poéticos e grotescos do seu mundo não funcionassem contra ele. "La Dolce Vita" (1960) operou, a muitos níveis, todas as rupturas: de cineasta conservador e de inspiração católica ("La Strada" fora utilizado, em Veneza, pela crítica de direita contra "Senso" de Visconti), passava a excomungado, sacrílego e herege.
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A fortuna crítica de Federico Fellini esteve sempre à mercê de estranhas flutuações. Quando Portugal era o maior importador mundial de cinema italiano, nos tempos áureos do neo-realismo e nos anos que se lhe seguiram, já o universo felliniano dividia as hostes: "La Strada" (1954) e "As Noites de Cabíria" (1957) possuíam suficientes atractivos para justificar a recuperação social, de modo a que os traços poéticos e grotescos do seu mundo não funcionassem contra ele. "La Dolce Vita" (1960) operou, a muitos níveis, todas as rupturas: de cineasta conservador e de inspiração católica ("La Strada" fora utilizado, em Veneza, pela crítica de direita contra "Senso" de Visconti), passava a excomungado, sacrílego e herege.
Para a geração dos que, como nós, chegaram ao "cinema de autor" na segunda metade dos anos 60, estavam já longe os tempos em que a Itália da década anterior funcionava como uma espécie de metáfora do Portugal censurado. Em 1959, Augusto Abelaira falara do nosso descontentamento sob máscara transalpina: o seu primeiro romance, "A Cidade das Flores", desenrolava-se numa Florença que era Lisboa camuflada. Nos cineclubes, De Santis, Visconti ou De Sica eram bandeiras desfraldadas de uma resistência vigiada, muitas vezes, pela ortodoxia comunista: Antonioni incorria no "pecado" do formalismo; Fellini representava uma poética circense, ainda por cima recuperável pelos sectores da Democracia Cristã.
Quando vimos, logo seguido de "Cabíria", nas saudosas Sessões Clássicas do Império, "Os Inúteis/ I Vitelloni" (1953), foi com o melhor de Fellini que estabelecemos contacto: uma bela crónica de costumes, próxima do registo autobiográfico, com personagens pusilânimes e credíveis, um delírio controlado e irónico. Depois veio a revolução de "La Dolce Vita", a inventar o conceito de "paparazzi", a despegar-se de um realismo que a modernidade já não comportava, com imagens fortes e surreais entre a estátua do Cristo a sobrevoar os céus de Roma ou as abundantes formas da Ekberg a cortar as águas da barroca Fontana di Trevi. Os incondicionais de Fellini (se é que alguma vez os houve) torceram os narizes, mais ou menos puritanos. A descontinuidade anárquica de "Oito e Meio" (1963) veio agravar a questão, salientando o grotesco e o caricatural num mundo em autoreflexão, apesar do seu rigor meticuloso e da sua militante modernidade.
Depois do falhanço de "Julieta dos Espíritos" (1965), exemplo acabado do lado mais débil do maneirismo felliniano, ao serviço da sua diva, Giuletta Massina, os "inimigos" encontraram pasto para todos os ataques: psicanálise barata, surrealismo de pacotilha, onirismo desregrado. "Satyricon" (1969) tinha a defendê-lo o suporte literário da decadência da Roma Imperial, antecipando, em glória visual, os erotismos desbragados dos anos 70, e "Os Palhaços" (1970) possuía a vantagem da adequação perfeita do imaginário à temática. Fellini transformara-se, no entanto, numa espécie de cineasta barroco, empenhado numa parada de "monstros", distante do real e de uma estética bem comportada.
Quando estreou "Roma" (1972), todos os que insistíamos em gostar de Fellini, dos seus excessos e das suas geniais idiossincracias, saudámos o equilíbrio/desequilíbrio entre a crónica de costumes e a fantasia historicista do episódio dos frescos que desapareciam com o contacto com o ar, fabulosa metáfora para uma arte rarefeita e essencial, que era a do mestre italiano.
E se "Roma" representava o esquisso para o regresso à memória de um passado, criativa e obcecante (inesquecível a sequência do espectáculo de variedades, durante a guerra, bem como o encontro, no presente, com a diva desses tempos conturbados, a grande Magnani), "Amarcord" constituía a obra-prima absoluta, a volta ao mundo essencial de "I Vitelloni", depois das experiências "desestabilizadoras" de "La Dolce Vita" e de Oito e Meio".
era uma vez...Em Portugal, estávamos no período excitante do imediato pós-revolução, no início do Verão "já quente" de 1974, quando "Amarcord" estreou no saudoso Castil, em Lisboa, espaçoso cinema de arte e ensaio "com vista" para um pequeno centro comercial, que deu lugar a um banco. Por isso tinha especial impacte a sequência em que após a cerimónia fascista com a gigantesca e atemorizadora efígie de Mussolini, se apagavam as luzes, e se ouvia a Internacional, saindo de um anónimo gramofone, estrategicamente colocado na torre da igreja. Havia quem batesse palmas, havia até quem a comparasse com a cena da Marselhesa em "Casablanca".
No final, discutíamos o inevitável naqueles tempos de exaltação da liberdade: poderíamos estar a ver aquele filme, assim, sem cortes, se não tivesse acontecido o 25 de Abril? E enumerávamos os momentos que teriam suscitado uma possível censura: a ridícula marcha dos dignitários fascistas, a tortura diferida do pai do protagonista, a cena erótica entre os fartos seios da tabaqueira. Numa coisa (quase) todos concordávamos: tratava-se de um brilhante retrato de uma adolescência passada em tempos de repressão, que todos reconhecíamos, se bem que situada na distante década de 30, bem como um fabuloso olhar nostálgico, mas crítico, sobre as contradições da Itália mussoliniana.
Da visão e da revisão do filme (vimo-lo três vezes nesse Verão) ficavam frases e réplicas que se popularizavam nas conversas de todos os dias, estabelecendo cumplicidades entre os que conheciam o filme: sobretudo o "Voglio una donna" (Quero uma mulher), gritado do alto de uma árvore pela personagem do tio alienado, interpretada pelo então popularíssimo comediante Ciccio Ingrassia (que formava dupla com Franco Franchi), mas também a rábula da perspectiva ("la Pros-pe-ti-va") com o dedo espetado e oscilante da professora de História de Arte.
Inesquecível era, ao som da hipnótica melodia de Nino Rota, recordando, quase duplicando, outras sonoridades fellinianas, a cena da excursão para ver o transatlântico, ou a pudica morte da mãe, pequeno intermezzo comovente num filme divertidamente sério. O que mais desarmava era mesmo a capacidade para, num filme feito de "gags", fazer do exercício da memória o "cimento" para atingir a mais coerente unidade.
Hoje, muitos anos depois, "Amarcord" permanece intacto na sua perfeição imperfeita, na sua beleza à beira de todos os riscos: a cena do transatlântica rima agora com outra das obras-primas do cineasta, "E La Nave Va" (1983); algumas das coreografias esboçadas encontraram a sua plena consecução no complexo "Ginger e Fred" (1986).
"Amarcord" continua sobretudo como a perfeita súmula de um mundo de sonhos e pesadelos com a subtileza da mais descarnada ironia e o traço grosso de quem sempre arriscou a caricatura e a derisão. Na obra genial de Fellini (mesmo que se dispensasse "Julieta dos Espíritos", "A Cidade das Mulheres", de 1980, ou o opus final, "A Voz da Lua", de 1990), tudo desemboca em filigrana no universo tragicómico de "Amarcord" e tudo parte dele com novo e mais forte vigor. Revê-lo é um renovado e terno prazer.