A comédia do desencanto

A princípio, a francesa Agnès Jaoui apenas queria ser actriz. Começou os estudos de representação com Patrice Chéreau, para quem fez "Hotel de France" (1987), mas o trabalho não chegava. Por isso (e porque, segundo ela, "o tempo para as actrizes passa ainda mais depressa"), começou a escrever argumentos com o marido, o actor Jean-Pierre Bacri. "Por necessidade, mas também por um desejo de dizer coisas, embora nunca tenha dito a mim mesma: um dia serás escritora".

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A princípio, a francesa Agnès Jaoui apenas queria ser actriz. Começou os estudos de representação com Patrice Chéreau, para quem fez "Hotel de France" (1987), mas o trabalho não chegava. Por isso (e porque, segundo ela, "o tempo para as actrizes passa ainda mais depressa"), começou a escrever argumentos com o marido, o actor Jean-Pierre Bacri. "Por necessidade, mas também por um desejo de dizer coisas, embora nunca tenha dito a mim mesma: um dia serás escritora".

Seguiram-se peças de teatro, que depois adaptaram para cinema, argumentos para uma das figuras de proa da "Nouvelle Vague", Alain Resnais, e inúmeros prémios. Após o magnífico "É Sempre a Mesma Cantiga", para Jaoui tinha chegado a altura de enfrentar mais um desafio e passar à realização. Com Bacri, começou a escrever um filme pessoal, "mas só nos saíam clichés e nada de interessante, divertido ou pessoal". Desistiram do projecto, mas acabaram por ficar de tal forma ligados às personagens criadas que resolveram aproveitá-las e fazer com elas algo que tivesse a ver com "temas que nos estão mais próximos, que conhecemos melhor, que nos dizem alguma coisa", confidenciou a realizadora.

E em boa hora o fizeram, já que (embora fosse sem dúvida interessante ter podido observar como as sensibilidades da dupla se colariam a um género tão codificado como o policial) "O Gosto dos Outros" (2000) é um dos objectos cinematográficos mais estimulantes dos últimos tempos. Apoiado (como não podia deixar de ser) por um magnífico argumento, põe em cena um irresistível mosaico de personagens (escritas a pensar em cada um dos actores do filme, todos eles fabulosos) e examina, com subtileza e ironia, as relações - pessoais, familiares e profissionais - na sociedade moderna.

Angústia existencial

Mas o que há de mais espantoso nesta crónica social é a forma como aqui a comédia de costumes aparece atravessada por uma melancolia profunda, um desencanto, espécie de angústia existencial, que se arrasta por todas as personagens: Castella (Jean-Pierre Bacri, fenomenal), o industrial pouco culto mas rico, sufocado por uma existência vazia ao lado da mulher, decoradora que prefere os animais às pessoas e transformou a casa numa "caixa de bombons"; Bruno, o motorista em profundo desgosto amoroso devido à traição da namorada; Franck, o guarda-costas com manias de superioridade moral, que esteve uma vez apaixonado e sofreu, não querendo por isso assumir de novo esse risco com a namorada, Manie (a própria Jaoui), uma empregada de bar e "dealer" em "part-time", desejosa de mudar de vida e assentar; e Clara (Anne Alvaro), actriz de teatro deprimida pela solidão e falta de trabalho (como Jaoui no início da carreira?) e professora de inglês de Castella, que se apaixona perdidamente por ela...

São pessoas a braços com frustrações várias, que chegaram a encruzilhadas na vida e não sabem como progredir, confrontadas com a necessidade de mudar, pôr de lado os preconceitos e aprender a olhar para os outros de forma diferente. Alguns conseguem-no (Castella e Clara), outros não (Franck), e por isso o "happy end" não será extensivo a todos.

E se no início estamos perante figuras que voluntariamente se colam a uma série de estereótipos - da ostentação bacoca do novo-riquismo ao sectarismo do meio artístico -, isso apenas acontece para que, lenta e quase imperceptivelmente, esses mesmos clichés possam ir sendo corroídos e dinamitados, dando origem a personagens complexas e tridimensionais, uma forma subtil e irónica de obrigar os espectadores a enfrentar as suas próprias ideias feitas.

E se uma mão mais pesada poderia ter levado "O Gosto dos Outros" para os caminhos da paródia mais cínica, Jaoui olha com ternura para as personagens e o retrato caloroso que faz dos seus defeitos e fraquezas é de uma delicadeza extrema, por vezes comovente (a cena final entre Clara e Castella no teatro).

Gostos não se discutem, já se sabe, mas não nos faria mal nenhum aprender com os gostos dos outros. É essa a lição do filme de Jaoui, refrescante demonstração de que, nos dias de hoje, os diálogos ainda podem ser os melhores efeitos especiais e entretenimento sinónimo de inteligência.