Crítica ao filme Vai e Vem de João César Monteiro: O meu último suspiro
De forma bastante enxuta e nada piegas, João César Monteiro diz adeus. E assim desmonta a tenda do seu cinema – do seu pequeno teatro – que é, incontornável, uma das obras mais ricas do cinema contemporâneo.
Este texto foi publicado no caderno Y no dia 20 de Junho de 2003.
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Este texto foi publicado no caderno Y no dia 20 de Junho de 2003.
É, como toda a gente sabe, o último filme de João César Monteiro. Difícil fugir a esta ideia e a este facto. Assim como é difícil fugir ao peso evocativo, mesmo solene, que tal ideia e tal facto transportam: não podemos ignorar que Vai e Vem encerra uma das obras mais ricas, densas e importantes, não só de todo o cinema português como de todo o cinema contemporâneo, "tout court".
Nem sempre é bom quando, ao falar de um filme, se imiscui entre ele e nós aquela espécie de "exterioridade" representada pelo que sabemos (muito ou pouco) de quem o fez e das circunstâncias em que o fez. Mas também não é seguro que fingir que não se sabe seja opção preferível. Valha que, ao risco de não se conseguir olhar para Vai e Vem sob outro prisma que não esse, esmagador, do fim (duma obra e duma vida), o filme responde com o seu próprio saber: sim, Vai e Vem também sabia que era o último filme de João César Monteiro, o que nos liberta um pouco, visto que, a esse respeito, sabemos tanto como o filme.
Está lá esse saber desde o princípio, quando no primeiro plano vemos a personagem de César Monteiro (ou César Monteiro ainda antes de ser a personagem, fica a dúvida) a atirar postas de fígado aos pombos. É um plano crudelíssimo, esse em que um homem se desfaz das suas entranhas, mas a dimensão irrisória de humor muito negro que se convoca serve também para marcar o tom do filme. Que será o filme de um João César Monteiro consciente do aproximar do fim do caminho, em tempo de despedidas, em tempo de desmontar a tenda. Impossível olhar para o lado, porque neste filme (não será em todos?) a morte é um cerco e não há lado onde se esteja a salvo — mas também porque Vai e Vem é um filme extremamente pudico onde "isso", a morte, é uma coisa tão presente que pode ser remetida para os lados, para cima ou para baixo.
Nada de "filmes-limite", ou de gestos "radicais" tipo "reality show" com caução onde um realizador filma a sua doença e a sua morte. A escola de César Monteiro é enxuta e nada piegas, é a escola dos velhos americanos, onde se aprende que há coisas de que o melhor é falar (e mostrar) por meias palavras ou de soslaio. Vai e Vem começa (o tal plano dos pombos) e acaba (os últimos vinte minutos, com apogeu no já célebre final do grande plano do olho de Monteiro) com referências, mais ínvias ou mais directas, a uma morte anunciada. Mas pelo meio é possível ir olhando para outras coisas, arrumando outras, acertando contas — há uma espécie de rame-rame inerente à vida (o "vai e vem") que é preciso preencher, e em última análise o núcleo de Vai e Vem, sem deixar de corresponder a um gesto terminal plenamente consciente de o ser, está mais aí do que noutra coisa qualquer.
Desmontar da tenda
Também por isso, Vai e Vem: que título tão ritualístico para o mais ritualístico dos filmes de Monteiro. Todos o são, mas não há nenhum como este. Em Vai e Vem tudo é ritual e tudo é cerimónia, tudo é orquestração e (vá lá, quase) tudo é representação: as viagens de autocarro (na primeira parte do filme em sentido ascendente, depois sempre a descer), com César a filmar-se como se estivesse dentro duma grande cápsula que o leva algures, sempre empoleirado junto à janela traseira, às vezes contorcendo-se como no plano das Bodas de Deus em que trepava pelas grades da cela; a escolha de uma mulher a dias, embora perante a figura da candidata possa ser dispensada a parte da carta de recomendação; as tarefas domésticas, onde o passar a ferro é tão parecido com um bailado que pode acabar em raccord directo com uma zarzuela; as conversas e os discursos, com aquela coloridíssima linguagem de Monteiro que é a linguagem certa para manter a veracidade do ritual; as refeições, como sempre uma celebração hedonista filmada de fio a pavio, nalguns casos com os comensais de kimono e de joelhos como se estivessem num filme de Ozu ou de Mizoguchi (outros dois grandes "ritualistas"); as manobras eróticas com meninas, conduzidas pela personagem de César Monteiro transformada numa espécie de sacerdote libertino; e por aí adiante.
Mas esse carácter ritual, que se liga à propensão de outros filmes recentes, em particular a trilogia de João de Deus, surge, desta vez, com os sinais da encenação relativamente à mostra — por isso dissemos que Vai e Vem também era um "desmontar da tenda". Há um momento fulcral, quando, em plena "celebração" com a personagem de Rita Durão, a de César, condutora da cerimónia, explica: "e agora, como isto é teatro, eu digo 'rosebud' e exalo o último suspiro". Não é só um momento de denúncia da representação (da deste e da de outros filmes), para pacificar o odor a escândalo com que César costumava assustar os espectadores (que assim ficam mais reconfortados, visto que afinal tudo era "teatro"), é sobretudo um momento reflexivo na relação entre César Monteiro e a "persona" que expunha nos filmes — uma espécie de descolagem, o assinalar de uma fronteira, ou, em termos de auto-retrato, o momento de dizer que "eu não sou este".
Nesse acertar de posições há outro momento (ou melhor, dois momentos, separados no tempo do filme mas aproximáveis) que parece significativo: a viagem com o homem, presumivelmente um político, de discurso fascista, e depois a viagem, nocturna e já em sentido descendente, com o miúdo do acordeão e do cãozito ao ombro. Há aqui quase uma escolha, ou há mesmo uma escolha, de ressonâncias apenas adivinháveis — mas na sequência com o miúdo (que deve ser a sequência mais candidamente emotiva de toda a obra de César) dir-se-ia que o realizador, estando certo de se ir embora, está a dizer, afinal, com quem fica. E fica com o miúdo pobre e com o seu pequeno circo rudimentar: "Eu gostava que te safasses" (ou coisa parecida) são as últimas palavras que a personagem de César lhe diz.
Depois, nas sequências finais, aparece a morte, na sua expressão mais corroída e corrosiva: a cena, fabulosamente grotesca, onde o realismo "documental" da operação tem o clímax na extracção de... um pénis gigante que estava algures no corpo da personagem de César (é fácil perceber o que é que César quer dizer que o destino lhe fez...). Toda esta parte final do filme é mais tensa, eventualmente mais circular: há mesmo uma panorâmica de 360º como havia nas Recordações..., há aquele plano (o último antes do do olho) em que Monteiro se filma nos banquinhos do Príncipe Real em que se sentavam as personagens dos Sapatos.... Ainda há o impressionante plano a preto e branco, Nosferatu outra vez, com a cena do velório que faz lembrar a sombra da mão de Max Schreck a percorrer o corpo de Greta Schroeder.
E depois, o grande plano do olho, que fica durante alguns minutos, a eternidade possível. Diga-se o que se disser (e já se disse muito), é talvez o plano mais simples e mais transparente do filme: um último olhar de César Monteiro aos seus espectadores (morituri te salutant), um último desafio, um último pedido. Como se dissesse, afinal, "eu sou este".