Tragicomédia à italiana

Há vagos ecos fellinianos dispersos pela disfuncionalidade da comunidade. Existe uma memória clara do genial melodrama (talvez devêssemos dizer tragédia) neo-realista de Visconti, "La Terra Trema", também uma crónica de uma ilha e dos seus habitantes, a braços com o tempo e com o atavismo de uma vida sem sentidos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há vagos ecos fellinianos dispersos pela disfuncionalidade da comunidade. Existe uma memória clara do genial melodrama (talvez devêssemos dizer tragédia) neo-realista de Visconti, "La Terra Trema", também uma crónica de uma ilha e dos seus habitantes, a braços com o tempo e com o atavismo de uma vida sem sentidos.

A história não é linear, começando por um ponto de vista infantil, de um dos filhos de uma estranha mulher, para logo a colocar no centro da ficção, Grazia de sua graça, a opulenta Valeria Golino, a lembrar as Mangano e as Pampanini de outras eras. A personagem é-nos apresentada como diferente, uma força da natureza mal integrada pela comunidade e tem um marido, um pescador-galã (Vincenzo Amato), que sofre com as suas excentricidades Durante todo o filme se fala de uma hipotética ida para uma clínica de Milão: qual seja a "doença" (epilepsia? depressão maníaca?) nunca fica claro, nem seria muito grave se não se apelasse constantemente a um forte sentido do real, procurando conferir verosimilhança às situações e personagens.

Numa das sequências mais estranhas, Valeria Golino decide libertar os cães amontoados num canil (apenas cães vadios ou raivosos, nunca sabemos) e a aldeia reúne-se para os abater, levando a protagonista, com a cumplicidade do filho, a refugiar-se numa gruta à beira-mar, dando a entender que se afogou. Pensamos no neo-realismo puro e duro de algum De Santis e começamos a interrogarmo-nos seriamente sobre a função e a pertinência deste complicado amálgama.

"Respiro" é um filme simpático e repleto de óptimas intenções. Emanuele Crialese, nascido em Roma, mas formado nos Estados Unidos, é melhor realizador que os "Tornatores" que infestam o pobre cinema italiano contemporâneo - a sequência inicial da inesperada batalha entre as crianças tem uma planificação notável - mas o seu maior trunfo revela-se também o seu mais exposto "calcanhar de Aquiles": a "italianidade" do projecto acaba por se resolver num quase folclorismo mediterrânico. O Sol, o mar, as grutas, as vespas, a pesca, o jovem polícia "deslocado" do continente, as crianças selvagens, tudo parece saído de outros filmes, numa abstracção-compêndio que cansa e que reduz o impacte desejado.

O final feliz, poético e impossível, não ajuda a clarificar objectivos, embora resulte visualmente eficaz. O que nunca desaparece da nossa mente de espectador é a ideia de "pastiche" hesitante e algo confuso: uma tragicomédia italiana quase por receita.