Marguerite Yourcenar: A eternidade ou nada

No começo das suas memórias, Marguerite Yourcenar não diz “eu”, mas sim “o ser a que chamo eu”. É a frase inaugural, a que reconstrói o seu nascimento: “O ser a que chamo eu veio ao mundo numa segunda-feira, dia 8 de Junho de 1903, pelas 8 horas da manhã, em Bruxelas, de um pai francês, pertencente a uma antiga família do Norte, e de uma belga cujos ascendentes se tinham há muito implantado em Liège.”

Foto
Yourcenar fará a sua última viagem, em 1987, por Marrocos, com quase 84 anos Jean-Louis Saporito

Yourcenar explicou numa entrevista porque evitara este “eu": “'O ser a que chamo eu’ significa que não sei quem sou. Sabemo-lo, alguma vez?” Noutra ocasião, a propósito de como não lhe interessava a escrita confessional, disse: “Um eu é uma coisa excessivamente aberta.”

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Yourcenar explicou numa entrevista porque evitara este “eu": “'O ser a que chamo eu’ significa que não sei quem sou. Sabemo-lo, alguma vez?” Noutra ocasião, a propósito de como não lhe interessava a escrita confessional, disse: “Um eu é uma coisa excessivamente aberta.”

E boa parte do que sabemos sobre ela, apenas cem anos passados sobre o seu nascimento (só em 2037 os papéis pessoais poderão ser consultados), é o que ela quis contar (nem sempre da mesma forma) ou reescreveu, transformando-se a si própria em personagem, depois de se ter transformado nas personagens dos seus livros maiores, o imperador romano Adriano das “Memórias”, o Zenão renascentista de “A Obra ao Negro” - quando um dia lhe perguntaram se Adriano era ela, respondeu: “Não. Eu é que me tornei nele.” Também disse, certa vez: “Através deles, vivi vidas paralelas.”

O trio de memórias “O Labirinto do Mundo” ("Memórias - Souvenirs Pieux”, “Arquivos do Norte”, “O Quê? A Eternidade") é muito mais a história das suas raízes familiares. E faz parte da arquitectura de quem se viu destinada não a contar uma vida tal como foi vivida mas a viver uma vida tal como poderia ser contada (na formulação da sua biógrafa Josyane Savigneau).


Michel

A mãe de Yourcenar morreu dias depois do parto. A grande figura da infância - uma das grandes figuras da sua vida - é o pai, Michel de Crayencour, aristocrata viajante, jogador perdulário, algo Casanova no amor às mulheres e à erudição.

Com esse pai que a quis tão sábia como livre, começou a ler Marco Aurélio, a estudar grego, latim e inglês na mansão teatral dos Crayencour, no Monte Negro, Norte de França, e a viajar, desde cedo, pela Europa.

"Obriga o Destino a coroar a tua vida. / O mundo é suficientemente grande para o teu maior desejo”, diz um dos primeiros poemas de Marguerite, então adolescente, já certa de ser escritora.

Com o pai escolhe um pseudónimo, anagrama do apelido Crayencour. E é ainda Michel que paga a edição de estreia, “Le Jardin des Chimères”, em 1921, assinado Marg Yourcenar. Tem ela 18 anos.

Dois anos depois, numa viagem a Itália, descobre a Villa Adriana. É quando o imperador romano lhe surge pela primeira vez como personagem.

A morte de Michel, em 1929, deixa-a com uma magra herança, que ela tenta administrar, enquanto não vive da escrita. Publica nesse ano “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”. As suas biógrafas Savigneau e Michéle Sarde dão conta de numerosos amantes, homens e mulheres, nesta fase.

Entre 32 e 39, Yourcenar passa longas temporadas na Grécia, com amigos. Traduz a poesia de Kavafis. Mantém uma intensa relação de amizade com um leitor da editora Grasset, André Fraigneau. De novo Savigneau e Sarde asseguram que se tratou de uma paixão avassaladora e infeliz - Fraigneau gostava de homens. A prosa poética de “Fogos” resultará dessa experiência.

Em 1937, Yourcenar vai a Londres encontrar-se com Virginia Woolf para a tradução de “As Ondas”. É nesse ano, também em Londres, que conhece Grace Frick, uma universitária americana.

Marguerite estaria a dizer disparates sobre Coleridge num bar de hotel, quando Grace, na mesa ao lado, decidiu intervir para a corrigir - é a versão da própria Grace.

O início da II Guerra convence Marguerite a ir viver com Grace para os EUA. Aí, primeiro nos arredores de Nova Iorque, depois numa ilha ao largo do Maine, manterá residência, já como cidadã americana, até à morte.

Ainda não vive do que escreve, apanha comboios de madrugada para dar aulas, trabalha intensamente.

No fim dos anos 40 recebe uma mala perdida. Dentro, está o esboço de uma primeira versão das “Memórias de Adriano”. Em 1949, reencontra-se com a personagem que descobrira na Villa Adriana.

Talvez a espera fosse um destino. Dirá ela: “Aos 20 anos, teria escrito a história de um esteta, talvez de um amante, talvez de um viajante, mas não teria visto o príncipe, não teria visto o chefe de Estado.”

O que procurou ver corresponde a uma frase de Flaubert: “Tendo os deuses deixado de existir, e Cristo ainda não existindo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só o homem existiu.” Encontrar esse homem, tomar a sua vida interior, é a busca do livro que finalmente a consagra.

Há-de terminá-lo já em Petite Plaisance, a casa da ilha dos Montes Desertos que Grace e ela compram em 1950.

Uma década depois, entre muitas viagens, vem a Portugal: “Não conheço outro país, salvo talvez alguns cantos da Inglaterra, onde a poesia esteja mais presente e se respire no mínimo campo e no mínimo bosque, dotada dessa infinita doçura que é a dos poetas portugueses da Idade Média.”

Descobre Pessoa, um poeta “extraordinário”. Conhece Eugénio de Andrade, com quem fala de Pedro e Inês de Castro.

Os anos 60 são atravessados pela doença de Grace - que lutará até 1979 com um cancro -, pelas campanhas ecológicas e anti-guerra do Vietname. Vota Kennedy. Politicamente, dirá, não é de direita nem de esquerda.

Em pleno Maio de 68 publica em França “A Obra ao Negro” - “a vida movimentada mas também meditativa de um homem que faz total tábua rasa das ideias e dos preconceitos do seu século para ver depois onde o seu pensamento o conduzirá livremente.”

Grace, que dedicava ao trabalho literário de Yourcenar um empenho infatigável, morre em 1979.

Meses depois, Yourcenar torna-se a primeira escritora a ser eleita para a Academia Francesa.

Os últimos anos

Da companheira com quem partilhou 40 anos de vida, de quem cuidou na doença, prescindindo (até à asfixia, não deixou de o dizer) de viajar, falará pouco, cada vez mais friamente.

Quando lhe perguntam porque se concentrara em homens que amaram homens - Alexis, Adriano, Zenão, e mesmo Mishima e Kavafis, sobre os quais escreveu - , Yourcenar diz: “O amor entre mulheres interessa-me menos, nunca encontrei dele um exemplo grande.”

E numa entrevista poucos meses antes de morrer, sobre a sua relação com Grace: “Primeiro, a amizade apaixonada, depois a história habitual de duas pessoas que vivem e trabalham em conjunto por comodidade [...]. Tentei ajudá-la mesmo até ao fim, mas ela já não era mais o centro da minha existência, e talvez não tivesse sido nunca.”

O seu último companheiro será outro amante de homens, o americano Jerry Wilson. Com ele viaja (Índia, Nepal, Japão, Médio Oriente), longe dos longos invernos do Maine. A força do desejo do viajante era nela tão irreprimível como o desejo sexual, terá dito a um amigo egiptólogo.

Jerry morre em 1986, com sida.

No Inverno seguinte, Yourcenar fará a sua última viagem por Marrocos. Tem quase 84 anos. Está nas cidades do deserto como nos “souks”, a brincar com camaleões e a beber chá. Não deixa de se vestir para jantar, e de usar todos os seus anéis.

Lê poesia sufi marroquina, livros de ecologia, sagas islandesas. Não chegou a voltar ao Nepal e à Índia, como projectara. Morreu a 17 de Dezembro de 1987. Deixara uma lápide pronta, com a inscrição 1903-19..., adivinhando que o seu corpo cederia antes do terceiro milénio.