O inferno não mora aqui

"Boys will be boys": porque os pais estão ausentes, os miúdos vão despistando o tédio suburbano com pequenos delitos em casas da "middle-class" americana. Suspeita-se: enésima crónica iniciática sobre o "teenage angst" nos subúrbios das grandes cidades americanas, metade empatia (pelas personagens) metade ironia (como mecanismo de distanciação), seguindo por um trilho que é caro ao cinema independente americano.

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"Boys will be boys": porque os pais estão ausentes, os miúdos vão despistando o tédio suburbano com pequenos delitos em casas da "middle-class" americana. Suspeita-se: enésima crónica iniciática sobre o "teenage angst" nos subúrbios das grandes cidades americanas, metade empatia (pelas personagens) metade ironia (como mecanismo de distanciação), seguindo por um trilho que é caro ao cinema independente americano.

Parece, mas não é: "L.I.E.", primeira obra de Michael Cuesta, realizador que vem da publicidade e que dirigiu episódios (segundo se diz, os melhores) da série Sete Palmos de Terra, impõe-se, afinal, como descoberta, afastando-se (ou afastando-nos) progressivamente das sombras que se lhe queiram projectar para revelar uma verdade interior que suspende a necessidade de julgamento. Essa não é a menor das ousadias de um filme que tem no centro a relação entre um adolescente de 15 anos e um pederasta, cristalização de uma monstruosidade a que Cuesta se atreve a conferir um tratamento caloroso. E se - sacrilégio - "L.I.E." for um filme sobre o amor?

Passou pelo festival de Deauville, onde arrebatou o Prémio Especial do Júri em Setembro do ano passado, com o odor a escândalo. Marcou presença em inúmeros festivais de cinema "gay & lesbian", com Cuesta a ser imediatamente promovido a "poster boy" da comunidade gay nova-iorquina. A revista "Les Inrockuptibles", que o entrevistou, esperava um "John Waters queer" ou um "Larry Clark histérico" - não esperava um pai de família, casado e com dois filhos.

Em todo o caso, "L.I.E." não se inscreve na linhagem auto-jubilatória do cinema independente americano que serve a provocação como programa para "épater les bourgeois". O que não quer dizer que não seja um filme transgressor - a primeira das transgressões sendo o protagonismo dado a um pedófilo; a segunda, e porventura maior, o facto de a tornar inaprisionável e de lhe conferir uma dimensão profundamente humana.

Mas essa é a "segunda parte" de um filme que se recusa a jogar no plano das primeiras intenções, preferindo lançar falsas pistas para preparar o terreno para o "twist" - que não chega a ser "twist", mas um desarmar vagaroso e quase impalpável de preconceitos.

subúrbios.

O início é vertiginoso, com Howie (Paul Franklin Dano) suspenso sobre a Long Island Expressway (que dá origem ao título, L.I.E.), equilibrando-se no viaduto por cima da auto-estrada mortífera onde a sua mãe morreu, recentemente, num acidente. "Os subúrbios, ao contrário da cidade, são um novo espaço para filmar, de forma a criar a sensação de realismo junto dos espectadores", diz Cuesta. "Tal como Scorsese foi capaz de empregar os sons, os cheiros e o pulsar de Nova Iorque nos anos 70, hoje coisas como o som da auto-estrada produzem uma nova espécie de experiência comum. O constante barulho do tráfego é algo que existe em qualquer bairro - toda a gente reconhece esse som. Como alguém que cresceu no subúrbio, se mudou para a cidade [Nova Iorque] e voltou para criar uma família, posso dizer que os subúrbios já não são comunidades-dormitório. Já não é o som dos grilos ao vento.

"Começa, então, por ser o relato da turbulência do crescimento nos subúrbios, sobre aquele momento em que os rapazes não sabem a que descobertas isso os levará. E porque os pais se destituiram (o pai de Howie é um empresário bem-sucedido que não perdeu tempo em arranjar uma amante), o ponto de vista é o dos "kids", evidenciando "L.I.E" como um filme sob a influência de Larry Clark, o de "Kids", justamente, mas também o de "Bully" (de 2001, inédito entre nós) - e, tal como Clark, Cuesta é fotógrafo. Howie e Gary (Billy Kay), o rufia do liceu, trazem ecos das personagens de Brad Renfro e Nick Stahl em "Bully", a vulnerabilidade e inocência do primeiro a servir de contraponto à depravação e rebeldia do outro, com um latente discurso homoerótico. Mas onde o olhar de Clark sobre os corpos dos adolescentes acaba também por ser um documento implacável e cru (são corpos sem consciência), o de Cuesta prefere o lirismo (evocando Nicholas Ray) de um desejo nunca nomeado, o de Howie por Gary. Até aqui nada de novo: "boys will be boys" e os corpos profanados de adolescentes que em "L.I.E." esperam na berma da estrada pelo dinheiro fácil em troca de sexo limitam-se a confirmar que Larry Clark é uma das referências incontornáveis do cinema independente americano. Até que um dos assaltos a uma casa alheia falha: os dois amigos são surpreendidos por Big John (excelente Brian Cox), um ex-marine, veterano do Vietname, que após algumas inquirições, acaba por chegar a eles.

fluxos.

Big John é um cidadão exemplar, mas tem uma falha: uma predilecção sexual por adolescentes. Quando Howie percebe que foi traído por Gary, começa a surgir uma lenta aproximação entre ele e Big John, que sem nunca esconder as suas intenções, acabará por revelar uma complexidade desarmante. "O cinzento é a cor do filme. Detesto os filmes onde tudo é a preto e branco", declarou o realizador à "Inrockuptibles".

É então que se começa a perceber que a auto-estrada é uma metáfora para os vários fluxos que atravessam o filme: a circulação dos veículos na Long Island Expressway (são planos recorrentes, em "fast-forward", que servem de pretexto para Cuesta exercitar os seus virtuosismos estilísticos, devedores do seu passado como realizador de publicidade), mas também o fluxo de afectos, culminando numa relação insuspeita entre Howie e Big John, de medo e fascínio, de respeito e compreensão mútua, de distância e pulsão sexual.

"Are you trying to seduce me?" Quem pergunta não é Howie, mas Big John, depois do jovem recitar Walt Whitman. Cuesta não esconde que a sua intenção era criar uma empatia entre o público e a personagem - mas não deixou de ver "Manhunter", de Michael Mann, em que Brian Cox interpretou o primeiro Hannibal Lecter. Ou seja, deixa o benefício da dúvida - reforçada pela subtileza da interpretação de Cox -, sem nunca introduzir um tom moralista, mas mantendo-se sempre do lado das personagens, mesmo que Big John possa surgir, por vezes, num molde algo caricatural, com uma mãe dominadora e uma austeridade militarista (mas também se dispensava, no final, a cena em que Big John substitui um hino militar por música clássica, como que sugerindo um lado sensível na personagem).

Natural de Long Island, Cuesta inspirou-se nas suas próprias experiências e memórias para "L.I.E.", um projecto que vinha mantendo desde há dez anos, e que escreveu em conjunto com o irmão, Gerald, e Stephen M. Ryder. "A ideia do filme foi-me inspirada por um tipo que esperava no carro à saída do colégio e tentava convencer-nos a entrar. Toda a gente sabia que ele era, de alguma forma, perigoso, mas grande parte era apenas fruto da imaginação dos miúdos. Tentei escrever vários argumentos com o meu irmão, mas encalhávamos sempre na personagem de Big John, o pedófilo, que era demasiado monolítica. Até ao dia em que encontrei o terceiro argumentista, Steve Ryder, um ex-polícia de Nova Iorque que prendeu um bom número de ‘duros’. Ele ajudou-nos a desenhar a personagem de Big John, a conferir-lhe toda a complexidade.

"Um filme sobre o amor? Não é, como em Larry Clark, um filme feito do lado dos adolescentes porque os pais desiludem, mas um filme onde os afectos circulam e a hipótese de uma relação filial se pode estabelecer entre Howie e Big John. Na fornada de revelações que, semana sim semana não, se anunciam no circuito do cinema independente americano, "L.I.E." é um objecto a reter e Cuesta um realizador a seguir com atenção.

"Há faixas que vão directamente para o inferno", diz Howie, suspenso sobre a Long Island Expressway. Mas o inferno não mora aqui.