Baixa Costura
Para a indústria da moda, chegou a altura mais esperada do ano - a apresentação das colecções de pronto-a-vestir, num "show" parisiense que reúne os intervenientes habituais neste tipo de acontecimentos, desde os estilistas aos repórteres, passando pelos editores de revistas, modelos ou fotógrafos. É um mundo em que egos delicados andam à solta e os próprios desfiles acabam por ocupar um segundo plano perante a mesquinhez, falta de vergonha e corrupção generalizadas de um grupo de pessoas incapazes de olhar para fora de si.
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Para a indústria da moda, chegou a altura mais esperada do ano - a apresentação das colecções de pronto-a-vestir, num "show" parisiense que reúne os intervenientes habituais neste tipo de acontecimentos, desde os estilistas aos repórteres, passando pelos editores de revistas, modelos ou fotógrafos. É um mundo em que egos delicados andam à solta e os próprios desfiles acabam por ocupar um segundo plano perante a mesquinhez, falta de vergonha e corrupção generalizadas de um grupo de pessoas incapazes de olhar para fora de si.
São estes os protagonistas de "Pronto-a-Vestir/Prêt-à-Porter" (1994), o olhar viperino que o sempre insubmisso Robert Altman lançou aos bastidores das "passerelles". É o segundo filme do realizador a surgir na Série Y, após "Caminhos Perigosos" (1998).
Ao contrário do que acontecia nessa adaptação de John Grisham, bastante atípica no interior da obra do cineasta, em "Pronto-a-Vestir" as habituais marcas autorais do cinema de Altman estão bem à vista: um estilo solto e semi-improvisado; a construção de um alargado mosaico de histórias e personagens que se cruzam e relacionam de forma meramente marginal (neste caso, a ligação é estabelecida por um suposto homicídio); os diálogos paralelos e cruzados que decorrem em simultâneo e para os quais o espectador é "atirado" por breves instantes, geralmente quando já vão a meio; e a utilização, como fio condutor, de uma espécie de "narração" contínua, aqui fornecida pela personagem (das mais bem conseguidas do filme) de Kim Basinger, uma atónita repórter sulista que vai cobrindo o evento sem perceber muito bem o que se passa à sua volta (pede-se ao espectador que se identifique com ela, supostamente a nossa porta de entrada para um universo estranho e louco, cujas coordenadas desconhecemos).
Aliás, não deixa de ser interessante comparar os momentos distintos, na carreira do realizador, em que aparecem estas duas obras, o que em muito ajuda a explicar as diferenças gritantes entre ambas: se "Pronto-a-Vestir" surge no auge da "ressurreição" de Altman - iniciada com os brilhantes "O Jogador" (1992) e "Short Cuts" (1993) -, que pôs fim à travessia no deserto dos anos 80 (uma década feita de filmes que ficaram na prateleira, adaptações "low profile" de peças de teatro, projectos marginais fora dos EUA e um regresso à TV onde tinha feito a sua aprendizagem nos anos 50 e 60), o Altman reservado de "Caminhos Perigosos" é já consequência de uma nova fase de relativo apagamento (em grande parte provocada precisamente pelo falhanço comercial de "Prêt-à-Porter"), que parece outra vez em vias de ser ultrapassada, em virtude do entusiasmo à volta do último "Gosford Park" (2001).
Visão impiedosa e cruelE para continuarmos no domínio das comparações, podemos ainda trazer à baila outro título já apresentado na colecção de DVD do PÚBLICO, "Balas Sobre a Broadway" (também de 1994), de Woody Allen, com o qual "Pronto-a-Vestir" partilha não poucas semelhanças. Para além de serem produto de prestigiados veteranos, verdadeiras instituições detentoras de algumas das obras mais pessoais e singulares (e, já agora, mais facilmente identificáveis) do cinema americano dos últimos 40 anos, são também duas sátiras artísticas que pretendem revelar hipocrisias e pretensões várias.
Mas há uma diferença gigantesca entre ambas e que as separa radicalmente: enquanto Allen consegue ainda, apesar de tudo, olhar para as suas personagens com ternura, a visão de Altman de cândida pouco tem. De facto, estamos perante (mais) uma visão impiedosa e cruel, com o realizador a deliciar-se a expor as fragilidades e inseguranças das suas figuras, tal como o fotógrafo abjecto de Stephen Rea se diverte a humilhar as três arrogantes editoras de influentes revistas de moda que o tentam contratar.
Não são propriamente seres simpáticos, mas na realidade (quase) ninguém neste filme o é, pois o nível de torpeza moral é uma constante e engloba todos, desde os vaidosos e arrogantes estilistas (Richard E. Grant e Forest Whitaker) ao insuportável magnata (Jean-Pierre Cassel) cuja morte é vista por todos como uma benção, passando pelo ladrão furtivo de Marcello Mastroianni.
Toda a gente engana toda a gente (irmãs contra irmãs e filhos contra mães), é tudo baixo (o choque e tristeza pela morte de Cassell só surgem depois de se descobrir que ele afinal não foi assassinado, tendo-se simplesmente engasgado num pedaço de gordura de fiambre, uma "vergonha" para a indústria) e nada é sagrado, com Altman a recorrer quase à escatologia - quando coloca obsessivamente as suas personagens a pisar excrementos de cão por toda a Paris - para deixar bem claro o desprezo que sente por um mundo postiço e fútil onde só o superficial interessa.
Daí a importância do desfile final, em que a última "colecção" de Simone Lo (Anouk Aimée) - composta apenas por modelos nuas -, "um 'look' despido", é anunciada como o fechar de um ciclo e o início de algo novo, a derradeira (e irónica) hipótese de "purificação" para uma indústria repleta de "podres". Não admira, por isso, que alguns modistas, como a casa Chanel, se tenham sentido ofendidos e recusado qualquer colaboração com o realizador.
Se o filme não está à altura de obras-primas como "Nashville" (1975) ou "Short Cuts", "Pronto-a-Vestir" em nada desmerece a longa e ilustre carreira de Altman, acabando por se cotar como uma muito divertida comédia de costumes, repleta de momentos deliciosos.
Repare-se no fabuloso plano-sequência inicial (óptimo exemplo do virtuosismo do realizador), que começa em Moscovo e termina, após um longo "travelling", em Paris, em frente à Torre Eiffel. Ou na reedição, por Mastroianni e Sophia Loren, da famosa cena de "striptease" de "Ontem, Hoje e Amanhã" (1963), de Vittorio De Sica (a cinefilia de Altman à mostra), com a novidade de as marcas da idade estarem agora, de um modo particularmente cómico, bem presentes...
E o que dizer da participação meteórica de Harry Belafonte, que nos informa do seu novo (e delirante) projecto cinematográfico, um filme sobre uma nova presidência de Reagan, em que Nancy dirige uma agência secreta, Oliver North é o Ministro da Saúde e dos Recursos Humanos e Sidney Poitier se apoderou da American Express?
São apenas alguns dos prazeres incidentais de um caldeirão que mistura e combina, com a destreza habitual em Altman, uma multiplicidade de histórias e personagens, apresentadas apenas fugazmente ao espectador, que terá depois de esperar pacientemente até as poder conhecer melhor e perceber qual a sua função e significado no desenrolar da acção (pense-se em Teri Garr, que ao longo do filme vamos vendo a comprar roupas pela cidade, que só perto do final compreendemos serem presentes para o namorado, um agente travesti da "Marshall Fields" interpretado por Danny Aiello...).
E a cereja em cima do bolo deste luxuoso divertimento será mesmo o "cast" verdadeiramente épico, mescla prodigiosa de velhas glórias do passado (Lauren Bacall, Mastroianni, Loren, Cassel ou Aimée), vedetas mais ou menos recentes (Chiara Mastroianni, Julia Roberts, Rupert Everett ou Kim Basinger) e "habitués" da "troupe" de Altman (Sally Kellerman ou Tim Robbins).