A coisa mais doce
Num mundo de cépticos, Paul Thomas Anderson faz-nos acreditar. "Punch-drunk love/Embriagado de Amor" não é deste mundo, portanto, não tem nada a ver com a ordem natural das coisas terrenas.
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Num mundo de cépticos, Paul Thomas Anderson faz-nos acreditar. "Punch-drunk love/Embriagado de Amor" não é deste mundo, portanto, não tem nada a ver com a ordem natural das coisas terrenas.
Em "Brigadoon" (1954), de Vincente Minnelli, Gene Kelly perde-se nas montanhas da Escócia e descobre um pequeno mundo (com Cyd Charisse lá dentro) que desaparecerá quando ele partir, como um feitiço em fim de validade. Será que alguma vez existiu? Kelly, que entretanto deixou de acreditar em todas as coisas que costumava acreditar (e nós com ele), acredita que sim e volta para o nevoeiro da Escócia.
É o mesmo tipo de vertigem que se pode experimentar com o novo filme de P.T. Anderson, que tem o seu Minnelli em dia e até foi buscar a "A Roda da Fortuna"/ "The Bandwagon" o fato azul de Fred Astaire para vestir Adam Sandler. Não há sapos a cair do céu numa ressonância apocalíptica como em "Magnólia", mas há um harmónio que aterra numa zona lunar de Los Angeles depois de um acidente.
"Vamos fazer um filme divertido! Com explosões!", declarava um entusiástico P. T. Anderson depois de ter feito "Magnólia" (1999), ao mesmo tempo que toda a gente o apontava como o mais inspirado e talentoso realizador a emergir no cinema americano. "Punch-drunk love" é o tal "filme divertido", e se não constitui exactamente um desvio, abre, pelo menos, uma hipótese de renovação estética na obra do realizador americano. É uma comédia romântica e é um filme de câmara comparado com os anteriores "Boogie Nights" (1997) e "Magnólia".
Afinal, Anderson é um irrequieto, com o mesmo tipo de discurso vivaz e nervoso de um Martin Scorsese. Como se descobre, numa entrevista ao Y, durante a passagem do realizador por Lisboa. Porque é que P.T. Anderson quis distanciar-se tanto da imagem de marca de P.T. Anderson? "Não vale a pena voltar atrás, fazer mais do mesmo. Isso seria entediante. Talvez me tenha cansado dos meus outros filmes."
Talvez, mas como notou o decano da crítica britânica David Thomson, os que sentiram desconfiança em relação à ascensão meteórica de Anderson podem aproveitar o momento para dizer: "Bem vos avisámos". Há quem ande à procura de explicações: porque é que o realizador de obras grandiloquentes que faziam o coro da infelicidade decidiu encurtar as ambições? Anderson brinca: "Oh, estou frito, estou frito! Já não me consigo lembrar porquê... Fui para o Hawai escrever um filme, para acabar de vez com a história do cancro ["Magnólia"] e filmar com o Adam Sandler. Ouvi uma série de histórias fantásticas e havia imensas coisas que eu queria fazer. Talvez tenha sido uma tentativa deliberada para fazer algo diferente, qualquer coisa mais estimulante e difícil."
Mais difícil? "Oh, sim. Quando se faz um filme que cruza várias histórias, se uma delas falhar, pode-se sempre passar à seguinte", ri-se. "Não se pode fazer isso num filme como este, não se pode deixar que alguma coisa falhe. Torna-se mais difícil disfarçar."
branca de neve é um homem.Uma das histórias fantásticas que Anderson levou consigo para o Hawai foi a de David Phillips, um engenheiro civil da Universidade da Califórnia, que acumulou 1.25 milhões de milhas em viagens de avião depois de ter comprado 12.150 embalagens de pudim numa promoção. O realizador leu o caso na revista "Time" e encontrou-se com Phillips, a quem comprou os direitos da história. Não se sabe o que é que surgiu primeiro, o pudim ou a vontade de fazer um filme com Adam Sandler, mas depois de juntar as duas coisas – e o tal fato azul de Fred Astaire –, nasceu Barry Egan, o último de uma linhagem de personagens que compõem o estudo de Anderson sobre disfuncionalidade amorosa. Como a ex-criança prodígio tornada adulta de William H. Macy em "Magnolia", Barry é alguém que tem amor mas não sabe o que fazer com ele. Uma reinvenção esquizofrénica do próprio Anderson, então. "Não importa se é um filme sobre uma perseguição de automóveis ou um filme de guerra ou o que quer que seja... Quando estamos a escrever, projectamos sempre aquilo que somos. É o nosso trabalho e, quer queiramos quer não, tudo decorre das nossas experiências, daquilo que sentimos."
No início de "Punch-drunk love", encontramos Barry Egan (Adam Sandler) num imenso armazém que só acentua a sua solidão, a falar ao telefone. O lugar é austero, as tonalidades são frias. Barry sai para a rua, para respirar o ar da manhã: o cenário é despovoado, só armazéns à beira da estrada. Há um acidente e Barry vê uma coisa cair-lhe aos pés como uma fatalidade. Um órgão? Um piano? É o tal harmónio, com o mesmo sentido épico das coisas que costumam cair do céu nos filmes de Anderson. Porquê? Não se sabe, mas Barry leva-o para o escritório e há-de acabar por dominar o instrumento, tal como há-de saber adaptar-se ao mundo. Sim, é uma comédia, tão estranha quanto absurda. Mas também é negra. Como tantas vezes nos filmes de Anderson, Barry preserva a inocência de alguém que ainda vive num estado de puerilidade, para quem o mundo é um lugar cheio de arestas e não se pode senão tropeçar nas coisas. É um reprimido, marcado pela família e dado a ocasionais explosões de raiva. Quando Barry está a ter o primeiro jantar romântico com a mulher da sua vida (na verdade, o primeiro jantar romântico da sua vida), pede licença e vai à casa-de-banho, que destrói num acesso de violência.
"Não sei como é que as outras pessoas são", diz. Ele é assim: alguém que carrega a expectativa do desastre em cada centímetro do corpo. "Punch-drunk" é uma expressão que, no boxe, designa o torpor provocado por uma sucessão de golpes. No amor, acontece o mesmo, segundo Anderson. "Punch-drunk love" será, então, uma redundância. Barry tem sete irmãs, como os sete anões da Branca de Neve. A ideia parece agradar a P.T. Anderson. Ou seja, Branca de Neve é aqui transformada em homem: é ele a "princesa" da história, à espera do casamento. "É isso mesmo", anima-se o realizador. "Sim, como um conto de fadas, foi isso que pensei." Barry conheceu, entretanto, Lena (Emily Watson, que arrebatou Anderson com a sua prestação em "Ondas de Paixão") e pode finalmente dar uma utilidade às embalagens de pudim que andou a empilhar no armazém só para provar o erro de "marketing" da promoção. Há um encontro incandescente no Hawai e um abraço apaixonado que parece suspender o tempo, com uma coreografia de silhuetas em trânsito, por detrás. E há música, como num filme musical onde ninguém canta nem dança.
sinfonia dissonante.Nem é preciso: tal como "Magnólia" partia das canções de Aimée Mann, em "Punch-drunk love" a música participa na própria construção do filme. É uma sinfonia dissonante, uma biblioteca de sons criada pelo habitual colaborador de Anderson, Jon Brion, pontuações que traduzem a própria energia esquizofrénica de Barry Egan. O realizador pôs Adam Sandler a ver os musicais de Fred Astaire. Foi a inspiração de Anderson, com a sua explosão de cores e fantasia. "São como canja de galinha", dirá. Qualquer coisa quente, retemperadora. Se o cinema americano dos anos 70 tem sido a referência-mor na obra do realizador – Scorsese em "Boogie Nights", Robert Altman em "Magnólia" –, "Punch-drunk love" convoca a memória do cinema clássico, dos musicais, mas também Jacques Tati. Há um trabalho de "design", a nível sonoro mas também plástico, como se o filme fosse uma partitura visual. "Vi as coisas do Tati pela primeira vez quando tinha 15 ou 16 anos. Foi muito divertido, mas não tenho a certeza de que se perceba muito quando se tem 15 ou 16 anos." Há interlúdios coloridos, imagens hipnóticas, que por vezes irrompem, como separadores. E há as letras L.O.V.E. tatuadas nos dedos de Philip Seymour Hoffman, como Robert Mitchum em "A Sombra do Caçador", de Charles Laughton.
"Lembrei-me disso porque ele passa o tempo a bater em tudo. É curioso, porque me tinha esquecido do Mitchum. Apenas pensei que seria uma boa ideia, pôr-lhe a palavra ‘Love’, amor. Na altura, houve alguém que perguntou: ‘Como em ‘A Sombra do Caçador’? E eu pensei: ‘Oohhh, pois é...’"
É um filme, também, que evoca o delírio cromático de "Do Fundo do Coração", de outro cineasta megalómano – "Ainda sou novo e ainda tenho que dar nas vistas", afirmou em tempos Anderson – , Francis Ford Coppola, que nunca mais recuperou da tentativa. "Punch-drunk love" pode ser o "small movie" de Anderson, mas tem o mesmo grão de loucura na asa. É filme para voar. Apesar de ter valido a Anderson o Prémio de Realização em Cannes, teve distribuição limitada nos EUA, onde desapareceu dos écrãs ao fim de pouco tempo. Num mundo de cépticos, ainda há quem se recuse a acreditar. Ele só quis fazer uma coisa doce.
"Foi o tempo e o momento certo para toda a gente. A Emily [Watson] queria fazer uma coisa doce e eu queria fazer uma coisa doce. E o Adam, provavelmente, não queria ter de se preocupar em produzir, escrever e dirigir os seus próprios filmes. Ele só queria ter alguém que o ajudasse a fazer isso. Foi um período maravilhoso para toda a gente."