TSF, a história da primeira emissão pirata
Foi do alto de dois prédios - um no Lumiar, o outro em S. João da Caparica -, que saíram os primeiros sons de uma emissão pirata daquela que mais tarde viria a ser a TSF, a 17 de Junho de 1984. Eram apenas quatro horas de depoimentos de perto de 60 personalidades portuguesas, que soaram em Lisboa, num domingo de manhã, através de dois emissores quase artesanais, construídos por um engenheiro holandês e instalados em segredo naqueles dois edifícios.
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Foi do alto de dois prédios - um no Lumiar, o outro em S. João da Caparica -, que saíram os primeiros sons de uma emissão pirata daquela que mais tarde viria a ser a TSF, a 17 de Junho de 1984. Eram apenas quatro horas de depoimentos de perto de 60 personalidades portuguesas, que soaram em Lisboa, num domingo de manhã, através de dois emissores quase artesanais, construídos por um engenheiro holandês e instalados em segredo naqueles dois edifícios.
Muito poucos terão ouvido as vozes de figuras públicas a defender a legalização de novas rádios, mas o acto valeu pelo simbolismo dessa luta, numa paisagem radiofónica monocromática, um duopólio da RDP, a emissora do Estado, e da Renascença, propriedade da Igreja Católica. No início dos anos 80, quando as rádios piratas (ou livres como eram chamadas) cresciam um pouco por todo o país, e cansados de uma batalha por uma lei que permitisse lançar novos projectos nas ondas hertzianas, travada há anos nos corredores da política, um grupo de jornalistas da RDP teve a ideia de fazer uma emissão e pô-la no ar para trazer a discussão dos gabinetes para a rua. "Foi decisiva para que o Parlamento viesse a criar a Lei da Rádio", diz Emídio Rangel, um dos impulsionadores desta provocação às autoridades, e que viria a ser o primeiro director da TSF.
Ao longo de vários dias, os depoimentos dos "nomes mais importantes do país", foram gravados (a área de desporto, por exemplo, ficou a cargo de David Borges que viria a estar na fundação da rádio) e entrelaçados com música e poesia, numa cave na sede da Cooperativa TSF, em Lisboa. Figuras do teatro, do cinema, da televisão, do desporto, da economia e da política (incluindo os então primeiro-ministro Mário Soares e o Presidente da República Ramalho Eanes) aceitaram defender a abertura das rádios à iniciativa privada aos microfones da TSF. "Era preciso mostrar que havia consenso na sociedade portuguesa sobre isto", afirma Rangel.
Depois foi necessário encontrar um local para transmitir a mensagem, a partir de emissores construídos por um engenheiro holandês, entretanto já falecido, mas "brilhante" nas palavras de João Canedo, sonoplasta e sócio fundador da Cooperativa TSF, que acompanhou toda a operação a partir do estrangeiro. "Falava todos os dias com Rangel sobre a forma como haveríamos de evoluir a estrutura técnica da emissão. A ideia era trazer um bocadinho da rádio que fazíamos em Angola", recorda João Canedo. Para tentar ludibriar as autoridades foram gravadas duas cópias da emissão para serem transmitidas em dois pontos diferentes de Lisboa, mas exactamente ao mesmo tempo. Com a cumplicidade de um casal amigo de Rangel, um dos emissores foi colocado num terraço de um prédio no Lumiar. O outro, de forma a chegar a toda a linha de Cascais, foi instalado no cimo de uma torre de apartamentos, o mais alto das redondezas naquela altura, em S.João da Caparica. A entrada foi facilitada por um porteiro que ficou convencido das boas intenções do grupo em fazer apenas "umas experiências com equipamentos", conta Rangel. Através de um sistema de comunicação via rádio, as duas equipas - Mário Pereira (que viria a ser o primeiro administrador da TSF) no Lumiar e Rangel, acompanhado de dois engenheiros na Margem Sul, conseguiram largar a fita ao mesmo tempo, precisamente às nove da manhã. Dias antes, tiras de publicidade publicadas em toda a imprensa anunciavam a emissão pirata, em 102 Mz. "Toda a gente se convenceu que a emissão seria em directo", relembra, com um sorriso. Logo pela manhã, as autoridades policiais cercaram a sede da cooperativa TSF, convencidas que seria ali que Mário Soares ou Ramalho Eanes estariam a prestar declarações. Mas não estava ninguém naquela morada. Os serviços radioeléctricos, "uma espécie de polícia das ondas hertzianas", começaram então a procurar a origem do sinal pelas ruas de Lisboa, com um aparelho próprio instalado num carro, e facilmente chegaram ao prédio do Lumiar. Mas esbarraram na resistência do casal, por coincidência administradores do condomínio, que recusaram a entrada à polícia por falta de qualquer mandado judicial. Foi então que as autoridades colocaram no ar uma emissão cheia de ruídos por cima da gravação da TSF e, por isso, a partir da segunda hora, foi difícil ouvi-la em Lisboa. "Só que não contaram com a outra cópia que continuou a soar na linha de Cascais e nunca chegaram a dar por ela", revela o fundador da TSF.
Mas, naquele domingo, o grupo que estava em S. João da Caparica, ficou apreensivo quando começou a ouvir vozes no andar imediatamente por baixo do topo do prédio. "Mais tarde viémos a saber que aí vivia um coronel das Forças Armadas. Por pouco, não fomos todos presos", ri-se Emídio Rangel.
A operação foi considerada um sucesso. "Queríamos agitar as águas e o objectivo foi conseguido. Os jornais falaram muito disso e até o próprio Governo se viu obrigado a comentar o assunto", conta Mário Pereira, também sócio fundador da Cooperativa TSF. Só anos mais tarde, já próximo do concurso de atribuição de frequências, a TSF começou as suas emissões regulares, a 29 de Fevereiro de 1989.