Depoimentos no dia da morte de João César Monteiro
Este texto foi publicado no dia 4 de Fevereiro de 2003.
João Bénard da Costa
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João Bénard da Costa
"Um dos grandes cineastas mundiais"
Conheci-o há mais de 30 anos, quando apareceu a escrever. Foi não só um cineasta genial, mas também alguém que escreveu do melhor português nesse tempo. Colaborou no Tempo e o Modo, fazendo crítica de cinema. Era considerado uma espécie de maluquinho genial que dizia umas terríveis inconveniências. Acabou por ser expulso da associação de realizadores da altura [anos 60]. Até que começou a fazer filmes. O primeiro, lindíssimo, sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. E depois, Quem Espera por Sapatos de Defunto..., que é uma matriz para o que virá. É nessa altura que algumas pessoas começam a defender que se trata de um caso de génio flagrante. Ele sempre gostou de provocar. Foi uma pessoa que travou um extremo combate. Até ao fim dos anos 80 é uma carreira discreta. É Recordações da Casa Amarela que lhe vale uma consagração mundial. É um dos grandes cineastas mundiais do século. [Construiu] uma espantosa obra romântica e da subversão no interior do romantismo. É esse lado subversivo que me apaixona e com uma fascinação pela beleza que vai até ao último limite. A beleza dessa capacidade de encontrar na imagem a possibilidade de acesso a uma ordem superior. Ele nunca foi católico, mas é curioso que haja um texto dele sobre O Passado e o Presente, do Oliveira, em que ele se diz parte dessa família de cineastas [crentes]. Há nele também um sentido do sagrado, uma beleza que atinge essa dimensão. O plano nas Recordações... em que ele descobre que a rapariga está grávida é passar do escatológico ao sagrado. Raros o conseguem, acabam por ficar no compromisso. Ele consegue tocar nos dois extremos, a abjecção e o sublime.
director da Cinemateca Portuguesa
Luís Miguel Cintra
"Muito do seu humor era um extremo pudor"
Tenho uma pena enorme que ele não continue a viver e a fazer cinema. Era um amigo e um grande cineasta. Foi com ele que fiz o meu primeiro filme. Voltei sempre a colaborar com ele. Era um cineasta que sabia muito bem ver as pessoas, um daqueles cineastas que gostava dos actores, das pessoas. Havia uma relação muito vital com a câmara. Uma maneira de ver e de viver. Por trás da ironia estava um coração muito grande e uma vontade de viver muito passional. Muito do seu humor era um extremo pudor.
actor e encenador
Paulo Rocha
"Um puro poeta"'
Estou bastante chocado. Marcou muito as nossas vidas e o cinema. Os ataques que recebeu no ano passado foram um sinal do país que temos, das televisões que temos. Era um puro poeta, um grande escritor, uma voz e um corpo único no cinema europeu e mundial. Era o único cineasta português que conseguia fazer filmes sobre ele próprio. Era uma personalidade fortíssima. Vamos demorar muito a fazer o balanço da vida dele.
cineasta
Manuela de Freitas
"Criação em carne viva"
Era uma pessoa com uma imensa liberdade, um grande artista, de um rigor absoluto. Nunca trabalhei com ninguém assim... talvez só com o Mário Viegas. Com ele havia uma criação em carne viva. Havia improviso mas ele sabia precisamente o que queria. O que é espantoso no trabalho dele é como se consegue ir tão fundo no horror da sordidez e ao mesmo tempo haver uma luminosidade, uma poesia, uma beleza extraordinária. Vivia na lâmina entre o fundo dos abismos e o máximo da luz. E isso não é só o que ficou nos filmes, era na relação com ele. Havia ali uma mistura do mais belo e do mais terrível. Era um homem genial.
actriz
Joaquim Pinto
"Estou consternado"
"Tinha estado com ele há muito pouco tempo. Não consigo dizer mais nada. Estou consternado."
Cineasta, produtor de 'Recordações da Casa Amarela'
Teresa Villaverde
"O cineasta mais livre"
O João César era o cineasta mais livre de Portugal e um dos mais livres do mundo. Agora mais que nunca, numa altura destas, nos fazia falta uma pessoa como ele. Há uma semana vi-o. Achei que conseguiria, por milagre, dar a volta à situação... Vai mesmo fazer falta aquela liberdade de que ele era um exemplo para toda a gente. Não sei quem é que o vai substituir. Acho que ninguém.
cineasta
Jorge Silva Melo
"Era inaprisionável"
Foi a primeira pessoa que acreditou em mim. Gostou de um artigo que escrevi em O Tempo e o Modo e chamou-me para assistente de Sophia de Mello Breyner Andresen. Juntos, depois, produzimos Quem Espera por Sapatos de Defunto..., que foi o primeiro filme da minha geração. Foi o filme dos nossos ideais de juventude, feito com dois tostões. A minha mãe emprestou-me quatro contos para a película. Por razões profissionais afastei-me dele e voltei a encontrá-lo no Silvestre, mas as coisas não correram bem, porque eu não gosto de ser actor. Mais tarde convidou-me para ser o João de Deus. Achei que ele era a melhor pessoa para o fazer, já que se tratava de um auto-retrato. Fiquei contente por ele ter tido a coragem de o fazer. O João César para mim é um dos melhores novelistas portugueses. Alguns dos seus argumentos são obras-primas. Quando havia muita gente à volta ficava atrapalhado. E há um isolamento e uma espécie de desprezo cada vez maior pelas coisas materiais. Mas há um momento de felicidade em As Recordações da Casa Amarela. Graças a dois produtores que acreditaram nele, João Pedro Bénard e Joaquim Pinto, ele era um realizador dado como acabado e teve a oportunidade de um novo arranque. Mas o João César era inaprisionável.
Cineasta, encenador, actor
João Mário Grilo
"Aprender a ressuscitá-lo"
Há uma série de pessoas excepcionais que fundem o que são com a sua obra. Os filmes dele são surpreendentes, passam de uma coisa que parece apontar numa direcção que o poderia aproximar de um criador europeu para coisas profundamente secretas. O Branca de Neve é o filme que sublima tudo isto. Chega-se a ele e tropeça-se. É um pensamento que se faz entre filmes. João César Monteiro mostra que há um degrau para subir, que só se sobe se se puder. Esse degrau é o do génio. Em Portugal temos três casos, o Manoel de Oliveira, o António Reis e o João César Monteiro. A luz que não está no Branca de Neve — porque não é um filme sem imagens, mas sim um filme em que a luz se apagou — foi a luz que se apagou hoje. Mas a ideia do João César cineasta morrer ou não depende muito de nós. O cinema é a arte da ressurreição. De cada vez que se acender um projector a ressurreição pode acontecer. A polémica do Branca de Neve levantou as piores suspeitas sobre o que somos. Agora há uma oportunidade para as pessoas se confrontarem com a pequenez que são. Este desaparecimento deixa todas essas cicatrizes do lado de cá. Acorda isso tudo, a relação com o país. Acho triste que a luz do projector se acenda melhor lá fora. Temos que aprender a ressuscitá-lo. Ele deixou os filmes para isso. São bocados de vida. Só os génios conseguem fazer isso. Cada vez que aparece um grande artista há uma possibilidade de as pessoas poderem aprender a ser melhores.
cineasta