Adeus, João de Deus
Havia uma multiplicidade de Césares dentro de César Monteiro, mas era essa multiplicidade que fazia com que César Monteiro fosse único.
Esta crónica foi publicada no jornal de 4 de Fevereiro de 2003
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Esta crónica foi publicada no jornal de 4 de Fevereiro de 2003
Em As Bodas de Deus, o filme de 1999 em que João César Monteiro encerrou a trilogia da sua personagem (e em boa parte, alter ego) João de Deus, havia a certa altura uma frase-interrogação-afirmação, proferida pelo próprio: "Quantos Césares fui". Na hora da morte de João César Monteiro, um dos três ou quatro maiores cineastas nascidos em Portugal, e quando se trata de, em pouco tempo, traçar um pequeno esboço do que foi a sua obra e, sobretudo, do que foi João César Monteiro dentro dessa obra, a frase fica a retinir na cabeça.
Césares houve vários, e no fundo houve só um. Pode-se começar por lembrar alguns dos mais remotos traços da passagem de César Monteiro pela paisagem cinematográfica portuguesa, os textos sobre filmes na revista O Tempo e o Modo, para se perceber que César foi sempre César, lírico e sublime, provocador e iconoclasta, aristocrata quando queria, ordinário quando era preciso (ou vice-versa) — num minuto a recitar Holderlin, no outro a dizer palavrões de fazer corar carroceiros.
Havia uma multiplicidade de Césares dentro de César Monteiro, mas era essa multiplicidade que fazia com que César Monteiro fosse único. Às vezes, nos filmes, era quando esses vários Césares se enfileiravam e se contradiziam que as coisas explodiam: lembrem-se estes últimos filmes, os da década que se iniciou com Recordações da Casa Amarela e seguiu com A Comédia de Deus, com o Bassin de J.W., com As Bodas de Deus.
Foram os filmes que ficaram mais conhecidos, também porque cheiravam sempre a escândalo — num país que também nunca soube muito bem o que fazer com César Monteiro, se havia de se orgulhar por o ter entre nós, se havia de se fazer muito pudico e corar com as ousadias de alguém que — Le Bassin de J.W. "dixit" — falava de Portugal como desta piolheira.
Era uma história complicada, a história entre César Monteiro e Portugal, e terá ficado por resolver. Agora era uma boa altura para Portugal, sem precisar de cair de joelhos, perceber que ele fazia falta, e que ter César Monteiro — numa altura em que tanto se fala da auto-estima dos portugueses — era uma boa razão para Portugal se orgulhar.
O que é curioso é que se César Monteiro morreu, sem qualquer espécie de dúvida, no auge da fama mediática (já todas as televisões e jornais sabiam que, para terem escândalo, bastava irem fazer-lhe uma pergunta, e é muito provável que ele adorasse isso) e do reconhecimento internacional, os seus filmes eram cada vez menos vistos em Portugal, embora fossem comentados na razão inversa do conhecimento que deles havia.
Veremos o que vai acontecer com o filme que César Monteiro ainda teve tempo para acabar de montar, mas o último que estreou em vida (o célebre Branca de Neve) foi o escarcéu que foi. E foi também o apogeu do César provocador e malcriado, delirante por ter um microfone à frente e por poder dizer em "prime time" que queria que o público português se fodesse.
Foi essa faceta de César a que mais se impôs na opinião pública, nestes últimos anos, incapaz de destrinçar entre o que nisso havia de genuíno e o que era mera performance. Mas os filmes falam de outra pessoa e de outras coisas. Como a obra de um dos cineastas por si mais adorados, Murnau, também se poderia dizer que a obra de César é um longo confronto entre a luz e as trevas. A luz e as trevas interiores de César Monteiro, as suas pequenas alegrias, as suas grandes obsessões, as suas amarguras.
Numa obra começada sob o signo da tristeza (não há nenhum filme português mais triste do que Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, de 1971), foi-se vendo essa tristeza transmutar-se em inúmeras cambiantes, numa espécie de expansão à procura de qualquer coisa que a segurasse e a pacificasse. Teria As Bodas de Deus, onde há aqueles dois belíssimos planos (o de César a trepar pelas grades da cela e o outro, em que cita o final de Pickpocket), sido o filme desse encontro, um filme, finalmente, de alguma paz? Não se pode saber com certeza. Sabemos com certeza, sim, que esta é uma daquelas perdas que deixa Portugal mesmo mais pobre. Mesmo que Portugal não o perceba muito bem.