Amílcar Cabral: "Uma pessoa assim só vai surgir daqui a cem anos"

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“As crianças são a razão da nossa luta, as fl ores da nossa revolução”, dizia Cabral DR

Cabral foi assassinado, na noite de 20 de Janeiro de 1973 em Conacri, já depois de ter anunciado que iria proclamar a independência da Guiné-Bissau. Sem ele, mas como era seu desejo, a Assembleia Nacional Popular proclamava o Estado independente da Guiné-Bissau, a 24 de Setembro de 1973.

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Cabral foi assassinado, na noite de 20 de Janeiro de 1973 em Conacri, já depois de ter anunciado que iria proclamar a independência da Guiné-Bissau. Sem ele, mas como era seu desejo, a Assembleia Nacional Popular proclamava o Estado independente da Guiné-Bissau, a 24 de Setembro de 1973.

Para trás, ficava uma década de luta, que viu crescer toda uma geração - de guineenses e cabo-verdianos - marcada pela efervescência dessa época. Pessoas que hoje, para além do maior de todos os sonhos, o da independência, não vêem concretizados os ideais de Amílcar Cabral. Falam de "decepção". Mas não relativamente àquilo que viria a ser o fim da unidade entre os dois países, desejada por Cabral e reflectida no carácter supranacional do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) mas a que o golpe de Estado de 1980, na Guiné, liderado por Nino Vieira, veio pôr fim.

São outras as razões da desilusão. "Não era isto que ele queria. Ele queria acabar com a miséria, dar educação e saúde à população. Isso não existe," diz a guineense Teresa Ramos. "Mas haveremos de lá chegar. Como eu, é toda a minha geração que está decepcionada, com a evolução dos acontecimentos, sobretudo na Guiné-Bissau".

Teresa Ramos era uma criança quando a sua mãe, a ainda hoje destacada dirigente do PAIGC, em Bissau, Francisca Pereira, partiu para a guerra na Guiné, como enfermeira. Teresa ficou entregue à Escola-Piloto de Conacri até completar o 5° ano. Depois, como a maioria dos seus colegas, prosseguiu os estudos secundários na Escola Internato Internacional, de Ivanovo, a 300 quilómetros de Moscovo. Amílcar Cabral fazia questão que todas as crianças prosseguissem outros estudos para além daquilo que a Escola-Piloto podia oferecer, mesmo que para isso tivessem que ir para a ex-União Soviética.

"Foram tempos felizes," diz Teresa Ramos com o olhar triste. Hoje é médica em Lisboa. Tem 42 anos e alguma dificuldade em falar do passado. Mas porque chora? É a recordaçao desses tempos? Ou é a pessoa? "É a pessoa," diz enxugando as lágrimas. "É inacreditavel que tenhamos estado tão perto de uma pessoa tão grande, e que não nos tenhamos apercebido disso enquanto ele era vivo. É inacreditavel a morte dele!" exclama incrédula. "Uma pessoa assim, na Guiné-Bissau só vai surgir daqui a cem anos!" Uma pessoa assim, como? "Com aquele carisma, aquela coragem de dizer o que outras pessoas tinham medo de dizer, aquela honestidade e força de lutar pelos ideais, aquele amor pelas crianças, e aquele espírito de sacrifício pela geração a seguir. Ele adorava as crianças!"

Também a marcou a disponibilidade de Cabral para comparecer a todos os eventos sociais. "Ele assistia, por exemplo, a todos os casamentos. Ele queria que as pessoas tivessem uma vida, na medida do possível, normal".

"Ainda sinto saudades"

Sempre que estava em Conacri, onde vivia, Amílcar Cabral visitava, de manhã cedo, a Escola-Piloto. No "colégio do partido", criado em 1965, residiam e estudavam os filhos de combatentes ou orfãos de guerra.

Conviviam diariamente com o líder no auge da acção armada do PAIGC, iniciada em 1963. Mas foi só depois da sua morte, que a maioria destes jovens tomou consciência da sua verdadeira dimensão, como revolucionário e político. É sobretudo o lado humano de Cabral que melhor recordam.

"Ainda sinto saudades de Cabral. ès vezes, ainda o vejo nos sonhos, mas sempre o vi vivo - nunca morto - do jeito que eu o conhecia". A cabo-verdiana Teresa Araújo, uma das ex-alunas contactadas pelo PòBLICO, lembra-se de Amílcar Cabral como um "segundo pai", que se interessava pelo bem-estar e o percurso académico de cada um dos mais de 200 alunos da escola.

Recorda o envolvimento de Cabral nas actividades culturais, "na visão que ele tinha de resistência através da cultura" e a sua vontade de incutir nos mais jovens "o amor pela sua terra, pela sua cultura".

E fazia-o sem nunca negar a ligação a Portugal e o ensino do português. "Era um tio carinhoso e muito exigente comigo. Obrigava-me a falar português. Era uma pessoa com muita autoridade. E ele nem era alto. Mas sabia impor-se naturalmente," lembra com um sorriso Patrick Cabral, sobrinho de Amílcar e filho de Luís Cabral.

O visionário

Foi com a ideia de formar os quadros que deveriam conduzir os destinos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, como países independentes, que o líder do PAIGC fundou a Escola-Piloto. "Foi com essa visão de futuro. Cabral via sempre mais à frente do seu tempo," continua Teresa Araújo. "A ideia era preparar pessoas para a reconstrução nacional".

E era também proteger as crianças separadas dos pais devido à guerra contra as forças coloniais portuguesas. Havia crianças das zonas libertadas e das zonas de combate. Eram, por vezes, crianças que os soldados encontravam perdidas no mato, sozinhas. "As crianças são a razão da nossa luta e as flores da nossa revolução", costumava dizer Cabral.

"E isso que ele dizia traduzia-se na maneira como éramos tratados, naquelas circunstâncias, com todo o cuidado que se deve ter com uma flor," diz Teresa Araújo. "Apesar das dificuldades, daquele ambiente pesado da guerra, nós éramos sempre poupados. Com a sua presença permanente, ele fazia tudo para minimizar o nosso sofrimento".

O percurso de Teresa Araújo é semelhante ao de muitos filhos de combatentes da luta pela independência. Os seus pais, José e Amélia Araújo, fugiram à PIDE, de Lisboa, onde faziam parte do círculo dos movimentos de libertação. Em Conacri, juntaram-se a Amílcar Cabral e ao PAIGC. José Araújo integrou o bureau político do partido, como responsável da Informação e Propaganda. Amélia Araújo dirigia a Rádio Libertação, criada em 1967. Como locutora das emissões em português, era ela quem lia os textos em que Amílcar Cabral desmascarava o que dizia ser a política enganosa das autoridades coloniais e denunciava a fome em Cabo Verde.

A "intolerância à injustiça" que conduziu Amílcar Cabral a lutar pela independência dos dois povos, é a mesma que alunos da Escola-Piloto recordam como um dos principais traços da sua personalidade. No mundo em que vivem actualmente, na Guiné, Cabo Verde ou Portugal, não reconhecem os ideais e o "espírito de militância e entrega a uma causa" que Amílcar Cabral lhes transmitiu, nem a mesma honestidade, frontalidade e disciplina que tanto os marcou. E quando se lhes pergunta se Amílcar tinha algum defeito, a resposta é quase sempre: "Duvido".