As boas graças de woody

Goste-se ou não dessa obra como um todo, é forçoso reconhecer que Woody Allen foi, em variados pontos do seu trajecto, um cineasta com vontade de correr riscos e não será mesmo muito fácil encontrar outro realizador que, dentro ou fora do cinema americano, no mesmo período em que decorre a obra de Allen, tenha sido capaz de tantas piruetas e golpes de rins como o "auteur" (expressão muito a propósito de "Hollywood Ending") de "Manhattan".

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Goste-se ou não dessa obra como um todo, é forçoso reconhecer que Woody Allen foi, em variados pontos do seu trajecto, um cineasta com vontade de correr riscos e não será mesmo muito fácil encontrar outro realizador que, dentro ou fora do cinema americano, no mesmo período em que decorre a obra de Allen, tenha sido capaz de tantas piruetas e golpes de rins como o "auteur" (expressão muito a propósito de "Hollywood Ending") de "Manhattan".

Em parte, é por isso que o futuro se torna difícil adivinhar: haverá nova pirueta no fim desta série de pequenos filmes realizados a velocidade de cruzeiro? Ou, hipótese que até ver se afigura como mais provável, corresponde esta série e esta velocidade a um ritmo de abrandamento, com o fim da viagem já à vista?

"Hollywood Ending" é, como já se terá depreendido, um filme muito ao género de "A Maldição do Escorpião de Jade" ou de "Vigaristas de Bairro" — um filminho. A reacção é, mais uma vez, mista: por um lado, é difícil iludir algum cansaço de espectador perante a enésima reiteração da persona cinematográfica de Woody Allen, com a sua neurose urbano-depressiva, irrequieta e verborreica, e todos os tiques, gestuais e orais, a ela associados; por outro, é preciso convocar alguma má vontade para não reconhecer a fina inteligência que Allen continua a praticar e a disseminar pelos filmes.

Dentro dos limites que se auto-impõe, "Hollywood Ending" é uma obra perfeitamente dominada, onde abundam os "gags", os apartes de "stand up comedian", as piadas mais ou menos "inside". Mais a mais, num filme que parodia o chamado mundo do cinema, dos executivos californianos bronzeados e acéfalos aos pequenos e muito presunçosos nichos do cinema de autor (e atenção ao delicioso gag que permite o "volte face" e o "happy end", com a genial tirada graças a Deus que existem os franceses). Que o próprio Allen não se exclua dessa paródia geral, eis o que só reforça a fineza do seu gesto.

E a história? A história é a de um realizador com manias de grandeza autorística que depois de ganhar dois Óscares há mais de dez anos ficou completamente queimado junto dos grandes estúdios hollywoodianos. Um dia, muito por obra e graça da ex-mulher (Tea Leoni, óptima actriz), cai-lhe nos braços a hipótese do "come-back" num filme de grande orçamento. O problema é que o nosso homem, em véspera de início da rodagem, fica psicossomaticamente cego... e cego terá que rodar todo o filme.

É uma ideia narrativa que, para além de todos os efeitos cómicos que propicia, permite a Woody Allen repescar (como, de resto, parece ser uma tendência a acentuar-se na sua obra) alguma coisa da memória do burlesco mais primitivo — nunca como em "Hollywood Ending" Woody se terá filmado, a este ponto, enquanto um corpo em literal rota de colisão com todo o cenário que o envolve. Pode-se achar que ele não vai aos limites dessa ideia (ou das outras), mas mesmo assim, como recusar liminarmente o que "Hollywood Ending" tem para mostrar?