Eça no País dos Mariachis

E rebenta a polémica: enquanto no México reagem os sectores mais reaccionários, no Portugalzinho à beira-mar plantado, Luís Francisco Rebelo (e quantos mais com ele?), intelectual de esquerda (com uma esquerda assim, "censória", quem precisa de uma direita beata e caceteira?) e Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, veio gritar "aqui del rei", que nos estão a atacar o património, sugerindo a proibição da exibição do filme.

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E rebenta a polémica: enquanto no México reagem os sectores mais reaccionários, no Portugalzinho à beira-mar plantado, Luís Francisco Rebelo (e quantos mais com ele?), intelectual de esquerda (com uma esquerda assim, "censória", quem precisa de uma direita beata e caceteira?) e Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, veio gritar "aqui del rei", que nos estão a atacar o património, sugerindo a proibição da exibição do filme.

Passemos a juízos de facto: "El Crimen del Padre Amaro" é uma adaptação de Eça? Se entendermos a adaptação segundo critérios de fidelidade à letra, a resposta terá que ser não. Faltam personagens, episódios, falta o Portugal beato da segunda metade do séc. XIX (só do séc. XIX?), acrescenta-se a teologia da libertação, o narcotráfico. Enfim, porquê invocar uma obra literária quando o filme tinha suficiente sozinho? O que alguns patrióticos da religião queirosiana prefeririam era uma série televisiva bolorenta, que desse correspondência visual a todos os tiques da Sanjoaneira ou a todos os achaques do Cónego Dias.

No entanto, quem, ainda hoje, prefere o pastelão soviético de Sergei Bondartchuk, "Guerra e Paz", chatíssima e "fidelíssima" adaptação de Tolstoi, ao belíssimo exercício hollywoodiano de King Vidor? Quem critica a Visconti o ter suprimido do seu "O Leopardo" a parte final do romance de Lampedusa? Que "Othello" domina a filmografia da peça shakespeariana? O teatro filmado das BBCs deste mundo, com o texto integral, ou a genial intervenção de Welles, colocando o enterro do herói trágico no início e cortando diálogos? Que imagens invocamos hoje para Dickens, as séries cinzentas e recheadas de pormenores da BBC, ou os filminhos de David Lean da década de 40, a preto-e-branco, cheios de elipses?

E já que falamos de Dickens, os súbditos de Sua Majestade manifestaram indignação pelo facto de um cineasta português, João Botelho, ter transportado "Tempos Difíceis" da Inglaterra vitoriana para o Portugal dos anos 70 do século XX, no que é o mais belo filme do realizador?

Pelo contrário, a pretextual "adaptação" de Eça é uma mais-valia patrimonial, demonstrando a vitalidade de uma cultura para além das suas fronteiras e dos limites representativos e cronológicos de um monumento literário.

eça está vivo. E passemos ao filme, um pequeno manifesto, gritando em surdina o absurdo do celibato eclesiástico e recuperando, mais de 100 anos depois, o espírito de crítica social do romance original. O padre Amaro ganha feições mais humanas, mas esse misto de vítima mais do que carrasco assenta bem à personagem. O lado sacrílego da hóstia guardada para o gato ou do manto da virgem para cobrir a amante seguem, se não a letra, pelo menos o intuito do original. A Dionísia do filme, a lembrar as bruxas do "Macbeth", é um dos sinais importantes para centrar o conflito num catolicismo ritual, imposto por cima das ruínas dos cultos indígenas. Manter muitos dos nomes do romance é o modo de manter a duplicidade: proximidade e afastamento simultâneo. O jogo de correspondências fica a nosso cargo, se assumirmos a função de leitores e espectadores.

A presença da matriz queirosiana tem ainda um efeito benigno, evitar os delírios da demagogia. Resiste-se sempre a simplificar as personagens em Bem e Mal absolutos. O padre Amaro como Don Benito são personagens complexas; a militância do padre Natálio nunca é separada de condições materiais do tecido social do mundo que o rodeia.

"O Crime...", como outros filmes mexicanos recentes, possui aquela qualidade intrínseca de inserir a narrativa numa visão interveniente, sem recorrer ao panfleto: rigoroso, clássico, consegue um enorme equilíbrio entre pretexto e objectivo. Eça foi bem servido, na medida em que se provou que está vivo no séc XXI, para além das aulas de literatura e das cliques religioso-literárias. Estamos certos também que o romance ganhará mais leitores e porventura uma visibilidade que nunca teve antes. E, se isto não é vitalidade cultural...