Corre, Matt, Corre
Seja como for, "The Bourne Identity", o "best-seller" de espionagem assinado por um dos expoentes da chamada literatura de aeroporto, Robert Ludlum (falecido no ano passado), de que este "Identidade Desconhecida" é uma livre adaptação, não desdenhava uma colagem ao "ar do tempo": publicado em 1980, beneficiava do clima da Guerra Fria, reservando um dos papéis principais ao lendário terrorista Carlos, o "Chacal".
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Seja como for, "The Bourne Identity", o "best-seller" de espionagem assinado por um dos expoentes da chamada literatura de aeroporto, Robert Ludlum (falecido no ano passado), de que este "Identidade Desconhecida" é uma livre adaptação, não desdenhava uma colagem ao "ar do tempo": publicado em 1980, beneficiava do clima da Guerra Fria, reservando um dos papéis principais ao lendário terrorista Carlos, o "Chacal".
Na versão de Doug Liman, não há terroristas mas tão-pouco um ditador africano, menos ameaçador para o mundo do que, eventualmente, para o seus súbditos, pormenor infinitamente secundário face à verdadeira ameaça: um núcleo da CIA que opera clandestinamente. Mas nem por aqui se poderão vislumbrar coincidências com a realidade: os serviços secretos americanos surgem diabólicos e irrepreensivelmente eficientes, capazes de localizar qualquer cidadão em qualquer ponto do mundo num minuto.
O cidadão em causa é um naufragado e amnésico Matt Damon, com duas balas nas costas e uma conta bancária na Suíça implantada no corpo - são as pistas para reconstituir a sua identidade. É a "nemesis" de Ripley: nessa mesma Europa (e tão pitoresca) onde, em "O Talentoso Mr. Ripley" (1999), assassinava para assumir a identidade das suas vítimas, Damon é agora o anjo caído, fugindo à perseguição do seu Pigmalião (como Tom Cruise em "Relatório Minoritário", não obstante as diferenças). Mas "Identidade Desconhecida" não se limita a um jogo do gato e do rato entre Damon/Jason Bourne e a agência secreta para a qual trabalha e que o quer eliminar porque falhou a última missão: é também o dilema de um homem com a sua natureza, um autómato em busca de um rosto humano, tal como Ripley tentava preencher o vazio com as máscaras dos que assassinava. Mas um busca a redenção, o outro não - e é esse desejo de resolução normalizada que faz com que "Identidade Desconhecida" comece a perder fôlego lá para o final (de resto, nada que não se possa apontar, também, a Spielberg).
O que não desmerece uma espreitadela: se se começava por demarcar "Identidade Desconhecida" da tendência geral em termos de oportunismo, a verdade é que o filme de Liman não acrescentando nada ao "thriller", tem a sua mais-valia num registo fora de tempo, dir-se-ia anacrónico. Dispensando a sofisticação tecnológica do género (resta apenas a questão da super-vigilância) e o habitual desfile de efeitos especiais, é capaz de nos fazer acreditar - ainda - numa clássica perseguição de automóveis (num Austin Mini...) pelas ruas de Paris.
De certa forma, é como se tratasse de um subproduto de um subproduto - uma subespécie de um filme de De Palma, por sua vez subtraído a um Hitchcock, "Intriga Internacional", por exemplo, esse filme em que Cary Grant passava o tempo a correr para tentar repor a sua identidade. Mas desconfia-se que não é essa a piscadela de olho que Liman procura. Pelo menos, não tanto como a de reconhecer, na parceira de Matt Damon, a actriz de um dos recentes êxitos do cinema alemão, "Corre, Lola, Corre" (1998), Franka Potente.