Cool And The Gang
Comece-se por aquilo de que todos falam a propósito de "Ocean's Eleven"/ "Façam as vossas apostas": o seu impressionante elenco. Afinal, não é todos os dias que um filme reúne os mais bem pagos actores de Hollywood. Tratando-se do "remake" de um filme de 1960 dirigido pelo veterano Lewis Milestone, Steven Soderbergh sabia que ter um argumento melhor não bastava. Se o "clássico" de Milestone tinha algo notório era a sua parada de estrelas: foi o primeiro de três filmes que reuniu Frank Sinatra e o seu "Rat Pack" - Dean Martin, Sammy Davis Jr., Peter Lawford e Joey Bishop. Portanto, Soderbergh tinha que se mostrar à altura.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Comece-se por aquilo de que todos falam a propósito de "Ocean's Eleven"/ "Façam as vossas apostas": o seu impressionante elenco. Afinal, não é todos os dias que um filme reúne os mais bem pagos actores de Hollywood. Tratando-se do "remake" de um filme de 1960 dirigido pelo veterano Lewis Milestone, Steven Soderbergh sabia que ter um argumento melhor não bastava. Se o "clássico" de Milestone tinha algo notório era a sua parada de estrelas: foi o primeiro de três filmes que reuniu Frank Sinatra e o seu "Rat Pack" - Dean Martin, Sammy Davis Jr., Peter Lawford e Joey Bishop. Portanto, Soderbergh tinha que se mostrar à altura.
Primeiro problema: como juntar meia-dúzia de estrelas que estivessem dispostas a abdicar dos seus egos para partilharem o ecrã irmãmente? É preciso não esquecer que Soderbergh é o realizador com quem todos querem trabalhar. Não é só efeito dos Óscares - "Ocean's Eleven" já estava em curso quando o realizador recebeu a estatueta por "Traffic". É que, como diz o título do seu livro semi-autobiográfico, Soderbergh sempre conseguiu "levar a melhor", mesmo depois da crise existencial pós-"Sexo, Mentiras e Vídeo", que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes aos 26 anos e o elevou a revelação-prodígio de uma indústria americana a acusar falta de ideias. Como? Emergindo de um modo de produção independente e avançando pelo "mainstream" adentro, conservando a marca de fabrico, sem, contudo, rejeitar maiores orçamentos e nomes mais sonantes para os genéricos dos seus filmes. Se nada mais, Soderbergh corresponde ao conceito que Hollywood faz de "autor". Mas já lá vamos.
George Clooney foi o primeiro actor sondado para "Ocean's Eleven". Ou isso ou o contrário: ao que parece, Clooney, que emparceirou recentemente com Soderbergh na produtora Section Eight, andava à procura de uma oportunidade para voltar a trabalhar com o realizador, depois de "Out of Sight" (1998). Foi ele quem fez todos os telefonemas: ligou a Brad Pitt, que já tinha manifestado interesse ser dirigido por Soderbergh; enviou o argumento de Ted Griffin a Julia Roberts - com 20 dólares anexados e a nota: "Ouvi dizer que agora fazes 20 por filme" -, que também queria voltar a trabalhar com Soderbergh; contactou Matt Damon, que aceitou de imediato. Todos aceitaram reduzir o salário habitual para metade. Por uma questão de profissionalismo. Ou, como diz Clooney: "Não quero armazenar dinheiro e ter uma lista de filmes muito maus no final de carreira."
Homens serão rapazes. Clooney pode estar descansado: o novo "Ocean's Eleven" ficará bem em qualquer lista. Mas, desde logo, há uma diferença em relação ao original, que foi mais um pretexto para Sinatra se juntar com um grupo de amigos e passarem um bom bocado no seu habitat natural. No início de 1960, o "ol' blue eyes", preferindo Las Vegas a Hollywood, convenceu os amigos a mudarem-se por uma temporada para a capital do jogo. O filme só foi projectado para aproveitar a longa estadia dos "entertainers" e Lewis Milestone aceitou produzir e realizar. Viria a arrepender-se: referiu-o como "a pior experiência" da sua carreira de realizador.
Os tempos eram outros até porque "o filme não tinha nada a ver com o que estava no guião", como hoje reconhece Shirley MacLaine, que, a pedido de Sinatra (como quase todo o elenco), teve uma pequena mas demonstrativa aparição como uma das "party girls". Que é como quem diz: o filme era a última das coisas nas cabeças do "Rat Pack". "Men will be boys", homens serão rapazes: fazer o filme era apenas uma forma de prolongar uma festa movida a whisky com soda e comentários impudicos sobre mulheres no intervalo dos espectáculos que Sinatra e os amigos rendiam todas as noites. Não admira que Milestone acabasse por perder o controlo do "seu" filme: os actores chegavam tarde para as filmagens e raramente cumpriam os diálogos estabelecidos no guião. Mas apesar de resultar um tanto ou quanto desconexo, "Ocean's Eleven" tornou-se um sucesso no Verão de 1960. Porquê? Para citar Clooney: "O filme não tem ponta por onde se lhe pegue, mas os tipos eram fantásticos. Talvez possamos compensar o facto de não sermos tão 'cool' quanto Sammy [Davis Jr.], Frank e Dean Martin com o facto de termos um melhor argumento."
Pois. Os elementos do "Rat Pack" eram "cool". O que é que isso significava nos idos de 60? Qualquer coisa como vestir um fato impecável, manter uma dieta de cigarros e álcool, ter uma concepção, no mínimo, despudoramente periférica em relação às mulheres (excepto num quarto de hotel), e aplicar uns quantos golpes de karaté em Sammy Davis Jr. enquanto se cantava "Tell me quick, ain't love a kick... in the head?". Mesmo o planeado assalto a cinco casinos era, como afirmava a personagem de Sinatra, Danny Ocean, uma desculpa para matar saudades dos amigos.
Em retrospectiva, no entanto, e com a subsequente imposição do politicamente correcto, o velho "Ocean's Eleven" dificilmente conseguirá evitar que lhe apontem sinais de decadência - afinal, tratava-se da reunião de um grupo de ex-companheiros da II Guerra, a tentar melhor sorte do que a vida lhes reservara.
Pós-modernos. Portanto, a pergunta óbvia é: o que faz um tipo como Soderbergh num filme como este? Quer provar que consegue levar a melhor. Façam favor de ler atentamente o título do livro-diário-entrevista de Soderbergh com o realizador Richard Lester: "Getting Away With It, Or: The Further Adventures of the Luckiest Bastard You Ever Saw".
Pior ainda: não se pode ser senão cúmplice num filme tão decididamente "cool". Desde, claro, que se aceite o artifício. Portanto, quando Clooney/ Danny Ocean pronuncia as famosas palavras "Are you in or out?" - qualquer coisa como "Alinham ou não?" -, adivinha-se que a resposta só pode ser uma.
É que se Soderbergh não quis preservar mais nada do filme original, pelo menos não quis desviar-se do seu espírito "cool". Novo problema, então: como ser "cool" 40 anos depois? O que no "Rat Pack" era condição natural e, certamente, produto de um profissionalismo descuidado, resulta no seu contrário no novo "Ocean's Eleven": uma meticulosa construção; uma pura demonstração de profissionalismo, afinal. Toda a gente chegou a horas ao "plateau" e quando o elenco se encontrou com jornalistas para a promoção do filme não havia uma miligrama de álcool à vista, o que levou Clooney a implorar por vodka.
Se a "coolness" do primeiro "Ocean's Eleven" resultava de uma reunião de amigos numa espécie de acção concertada, no filme de Soderbergh ela é mais o veículo das características de cada actor - pode ser que o "um por todos, todos por um" ainda seja válido, mas não dispensa a consciência clara e diferenciação das marcas pessoais - e à excepção de Andy Garcia (talvez porque o seu papel era o único "uncool"), todos parecem estar a interpretar-se a si mesmos.
Claro que ser "cool" na pós-modernidade ainda é uma questão de bom guarda-roupa - e "manchar" o "look" impecável com o facto de estar sempre a comer "junk food", como a personagem de Brad Pitt, que, de resto, sempre gostou de brincar com sua imagem. Mas é, acima de tudo, ter as piadas no sítio certo e não tecer comentários eventualmente misóginos sobre mulheres ou racistas sobre o companheiro negro da pandilha. E até pode suceder que o planeado golpe aos (na nova versão) três casinos de um odioso proprietário, Terry Benedict (Andy Garcia), não passe, afinal, de um veículo para recuperar a mulher perdida. Depois, é só contar com o virtuosismo do realizador. E, neste aspecto, Soderbergh é o homem ideal para a tarefa.
Na sua última edição, a revista "Movieline" perguntava-lhe: "Com toda a gente a dizer-lhe como você é bom, com um Óscar e vários prémios em casa, quão bom é que realmente se julga?" Resposta, com apropriada modéstia: "Ironicamente, não sou um artista como Tarkovsky, cujo filme, 'Solaris', vou arruinar. Tenho-me dado conta de que sou, sobretudo, um artesão que é capaz de criar entretenimento de forma artística."
Sem inventar nada, Soderbergh tem-se revelado um aluno aplicado, sustentando a sua filmografia na recuperação dos códigos com que Hollywood se reinventou nos anos 70, com a vaga dos "movie brats". Se "Ocean's Eleven" parece tão evidentemente "seventies", não é só por uma questão de indumentária ou da banda sonora "funky": é, sobretudo, pelo tratamento visual (Soderbergh é irrepreensível na arte de encontrar uma adequação entre tratamento e material, desde a forma crua como filmou Julia Roberts em "Erin Brockovich" à variação de cores nas histórias cruzadas de "Traffic") e pela montagem - os "raccords" em "fast motion" efectuados com imagens gerais de Las Vegas, não parecem saídos do inventário imagético de "Koyaanisqatsi" (aliás, Soderbergh foi produtor executivo do último filme da trilogia Qatsi)? E se Scorsese confessou ter-se inspirado no original "Ocean's Eleven" para "Tudo Bons Rapazes", o filme de Soderbergh - no recurso aos "travellings" em "steadycam" no interior dos casinos - não evidencia a sua herança daquele título de Scorsese?
Outro sinal da linhagem de Soderbergh é a recuperação (admirável) do actor Elliot Gould (tal como em "The Limey", de 1999, convocou Terence Stamp e Peter Fonda), que viveu o seu período de maior popularidade na década de 70, sob os auspícios de Robert Altman e Paul Mazursky. Artifício, nada mais que artifício (Gould interpreta um caricatural magnata caído em desgraça que parece atrair a si todo o "kitsch" visual daqueles anos), mas, provavelmente, não havia melhor maneira de corresponder à superficialidade de Las Vegas.
"Are you in or out?" Definitivamente "in".