Respigadora de Imagens
Mesmo assim, é bom que se explique: respigar é o acto de apanhar as espigas após a colheita do trigo. Um termo que se perdeu algures no tempo e que o filme de Agnès Varda recupera, a par do gesto ancestral de recolher e aproveitar o que outros deitaram fora, buscando uma filiação na actualidade. E isso permite-lhe não só reencontrar os "descendentes" mais directos dos velhos respigadores, mas também os mais insuspeitados: respigar é uma actividade que existe tanto no campo como na cidade, mas no último caso, é mais provável que se diga "mendigo" em vez de "respigador". É justamente nesta ligação que "Os Respigadores e a Respigadora" adquire maior efeito, recompondo, rearranjando, propondo novos sentidos que vêem na recolha de batatas no campo e de legumes nos mercados da cidade o mesmo gesto. Se isso, só por si, já bastaria para confirmar a singularidade do documentário, Varda propõe um acordo, porventura mais difícil: a de se assumir como respigadora de imagens - de forma explícita, como na belíssima sequência em que a sua mão tenta "agarrar" os camiões na auto-estrada - e de si mesma, o que resulta numa espécie de auto-retrato fragmentado em que, curiosamente, não é o reconhecimento, mas a estranheza que desponta: "Sou um animal que não conheço", diz, observando a pele enrugada das mãos. Se a produção documental dos últimos anos se tem pautado pela sobreposição da narração individual à história colectiva e, nalguns casos, pelo relativo despudor em ultrapassar a fronteira entre ficção e documentário, o filme de Agnès Varda (que abriu os Encontros Internacionais de Cinema Documental, na Malaposta, no ano passado) estende ainda mais as possibilidades de exploração dessa linha ténue entre dois terrenos supostamente contrários, aliada à técnica. O pressuposto é documental - revelar os "respigadores" do ano 2000 -, mas o género "stricto sensu" é abalado por uma subjectivização do olhar, a que não é alheia a descoberta das potencialidades de uma mini-câmara digital. Parece muito - e é muito -, mas Varda nunca perde o sentido do seu trabalho, sobretudo, que toda a sua demanda tem como finalidade o encontro com o "outro" - com todos os outros: as personagens (mais do que extraordinárias) do filme, uma Varda do outro lado do espelho, os espectadores. Como resume o único psicanalista-viticultor do filme (do mundo?), Jean Laplanche, expondo a sua anti-filosofia do sujeito, o Outro (e não o Eu) é o que preside à constituição do homem. É por isso que Varda se reconhece como respigadora: porque tem necessidade de captar imagens como outros têm de respigar. Para sobre-viver.
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Mesmo assim, é bom que se explique: respigar é o acto de apanhar as espigas após a colheita do trigo. Um termo que se perdeu algures no tempo e que o filme de Agnès Varda recupera, a par do gesto ancestral de recolher e aproveitar o que outros deitaram fora, buscando uma filiação na actualidade. E isso permite-lhe não só reencontrar os "descendentes" mais directos dos velhos respigadores, mas também os mais insuspeitados: respigar é uma actividade que existe tanto no campo como na cidade, mas no último caso, é mais provável que se diga "mendigo" em vez de "respigador". É justamente nesta ligação que "Os Respigadores e a Respigadora" adquire maior efeito, recompondo, rearranjando, propondo novos sentidos que vêem na recolha de batatas no campo e de legumes nos mercados da cidade o mesmo gesto. Se isso, só por si, já bastaria para confirmar a singularidade do documentário, Varda propõe um acordo, porventura mais difícil: a de se assumir como respigadora de imagens - de forma explícita, como na belíssima sequência em que a sua mão tenta "agarrar" os camiões na auto-estrada - e de si mesma, o que resulta numa espécie de auto-retrato fragmentado em que, curiosamente, não é o reconhecimento, mas a estranheza que desponta: "Sou um animal que não conheço", diz, observando a pele enrugada das mãos. Se a produção documental dos últimos anos se tem pautado pela sobreposição da narração individual à história colectiva e, nalguns casos, pelo relativo despudor em ultrapassar a fronteira entre ficção e documentário, o filme de Agnès Varda (que abriu os Encontros Internacionais de Cinema Documental, na Malaposta, no ano passado) estende ainda mais as possibilidades de exploração dessa linha ténue entre dois terrenos supostamente contrários, aliada à técnica. O pressuposto é documental - revelar os "respigadores" do ano 2000 -, mas o género "stricto sensu" é abalado por uma subjectivização do olhar, a que não é alheia a descoberta das potencialidades de uma mini-câmara digital. Parece muito - e é muito -, mas Varda nunca perde o sentido do seu trabalho, sobretudo, que toda a sua demanda tem como finalidade o encontro com o "outro" - com todos os outros: as personagens (mais do que extraordinárias) do filme, uma Varda do outro lado do espelho, os espectadores. Como resume o único psicanalista-viticultor do filme (do mundo?), Jean Laplanche, expondo a sua anti-filosofia do sujeito, o Outro (e não o Eu) é o que preside à constituição do homem. É por isso que Varda se reconhece como respigadora: porque tem necessidade de captar imagens como outros têm de respigar. Para sobre-viver.