Shortcuts
Esta retrospecção mínima é fundamental para entender a atitude do cinema de Soderbergh como entidade e marca autoral no relativo anonimato da indústria. A "visão soderberghiana" nunca se esgotou num enredo, por muito complexo que seja, aspirando sempre a um ponto de vista que transcenda as formas e as questione. Há um lado "clever" que co-existe com uma consistente meditação sobre a vontade de filmar.
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Esta retrospecção mínima é fundamental para entender a atitude do cinema de Soderbergh como entidade e marca autoral no relativo anonimato da indústria. A "visão soderberghiana" nunca se esgotou num enredo, por muito complexo que seja, aspirando sempre a um ponto de vista que transcenda as formas e as questione. Há um lado "clever" que co-existe com uma consistente meditação sobre a vontade de filmar.
"Traffic - Ninguém Sai Ileso" é o exemplo acabado do que ficou exposto: parte do conceito de mosaico, da narrativa fragmentária modernista, para uma visão de conjunto que é a própria razão de ser do filme. "Traffic" é, assim, a possibilidade de unificar episódios e histórias, a interrogação sobre a eficácia narrativa e formal do cinema moderno.
No horizonte próximo, dois modelos opostos e complementares: o Robert Altman de "Nashville" e "Shortcuts", capaz de arriscar a pulverização do narrativo, e, mais em profundidade, o Orson Welles de "A Sede do Mal", evocado pelas circunstâncias da história mexicana, mas sobretudo presente na estatura de um ensaio (quase "ético") sobre as grandezas e misérias do humano.
O pretexto para a longa viagem fragmentária é a luta contra a droga dos dois lados da fronteira. No México, um polícia, Javier (espantosa secura e intensidade de Benicio del Toro), que se cruza com o aparente paladino da luta antidroga, o general Salazar (Thomas Millian - lembram-se de "Identificação de Uma Mulher", de Antonioni?), afinal comprometido com um cartel rival do que quer aniquilar.
Do lado americano, uma figura "bigger than life", o juiz Wakefield, a que Michael Douglas confere a necessária fragilidade, debate-se entre o dever e a dissolução lenta da sua família, protagonizada pela filha drogada e pela mulher demasiado permissiva. Pelo meio uma enorme quantidade de personagens, com destaque para a mulher do traficante, Helena (gordíssima e grávida Catherine Zeta-Jone, em forte composição de alto risco para a sua imagem estelar), peão maior de uma exposição da falta de escrúpulos e da ausência de regras no "salve-se quem puder" dos grandes interesses financeiros.
Para recompor este esquema, vamos de fragmento em fragmento, de estilhaço em estilhaço, apanhados pelo laço de um envolvente plano para dissolver o factual no atmosférico. Por isso, a fotografia dos episódios mexicanos insiste nos tons de terracota, enquanto nas cenas americanas vemos oscilações de luz e sombra a marcar e a delimitar territórios diversos.
E o mais interessante é que, em "Traffic", há muitos vilões mas não há heróis: a renúncia final de Michael Douglas não tem grandeza, pois há muito a personagem perdera carisma. Até o "triunfo" de Del Toro na sua luta pela dignificação do futuro das crianças na zona fronteiriça (a caricatural iluminação para a prática do "baseball" subsidiada pelos vizinhos ricos do Norte) esbarra na sua frieza, traidor por uma boa casa num labirinto de traições e de mentiras.
"Traffic" cumpre o plano narrativo proposto, mas recusa qualquer triunfalismo, colocando-se num incómodo olhar do criador sobre os limites da criação. Mais, nunca transparece da relação do cinema com o real um posicionamento moral explícito: todos fazem parte de uma cadeia de que só alguns elos podem quebrar-se. Por isso mesmo, o título pode ser irónico, caso não seja tomado como uma pequena parte do todo (apetece aplicar-lhe a fórmula latina e chamar-lhe "Do Tráfico"), ínfima amostra para uso ficcional e questionação artística.
O olho da câmara reflecte o do homem que quis a impossibilidade de chegar ao âmago do "kafkiano" por meios pseudobiográficos. Também Welles, antes dele, tropeçara na complexidade de "O Processo", demasiado fugidio para fixar em imagens. Porém, "Traffic" tem um trunfo de monta: aposta na multiplicidade caleidoscópica de personagens e acções exemplares para tocar de longe na carne do humano. E mesmo onde falha, assume esse "falhanço" (palavra fulcral para falar de muitos dos monumentos artísticos americanos do século XX) como percurso e risco.
Por tal razão, "Traffic" nunca engana, propõe, olha, ironiza, destrói, reconstrói. Soderbergh continua o seu coerente caminho à procura de uma modernidade em carne viva, rodeado de indústria por todos os lados menos por um.