Sessão dupla

Dois filmes demasiado curtos para poderem constituir, cada um por si, uma sessão "normal", mas se calhar também demasiado longos para se adaptarem pacificamente à função de complemento de uma longa-metragem. O relativo ineditismo comercial deste agrupamento dos filmes de António Ferreira e Miguel Gomes merece ser destacado, menos por ser uma proposta "arriscada" do que por confirmar que na distribuição cinematográfica a vontade também é um factor importante.

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Dois filmes demasiado curtos para poderem constituir, cada um por si, uma sessão "normal", mas se calhar também demasiado longos para se adaptarem pacificamente à função de complemento de uma longa-metragem. O relativo ineditismo comercial deste agrupamento dos filmes de António Ferreira e Miguel Gomes merece ser destacado, menos por ser uma proposta "arriscada" do que por confirmar que na distribuição cinematográfica a vontade também é um factor importante.

Com os seus 40 e tal minutos de duração, "Respirar Debaixo d Água" é uma espécie de pequena longa-metragem. Menos pelo tempo que dura do que pelas suas preocupações narrativas e formais, muito mais do lado das longas do que do que é habitual nas curtas. É um filme feito com o tempo (e não contra ele), e nessa característica habitará quase tudo o que faz o seu charme. É a maneira como faz "durar" o tempo (veja-se a sequência do quase afogamento, ou toda a sequência final) que permite a esta crónica de rebeldias e paixões adolescentes, feita com figuras extraidas do universo mitológico do cinema americano mas transpostas de maneira credível para a "paisagem" portuguesa, escavar dentro de si um cativante território de incerteza e indefinição. Um território suficientemente forte para resistir à ameaca de "arredondamento" que por vezes se pressente (a personagem do pai severo, um excesso de "contexto" desnecessário à mecânica do filme), e que chega e sobeja para dar a perceber que Antonio Ferreira, para além de saber contar uma história, possui algo que nem todos os "contadores de histórias" possuem: um olhar (ou uma ideia) sobre as personagens, que acaba por se impor à narrativa e tomar-lhe as rédeas. Dá para aguardar com expectativa futuros trabalhos do realizador, esperando que ele resista à tentação do "escorreito" e deixe por limar as arestas que não devem ser limadas.

"Inventário de Natal", segundo filme de Miguel Gomes, é completamente distinto. E já agora, também completamente distinto de "Entretanto", o seu filme de estreia. Absolutamente fiel ao título, "Inventário de Natal" é uma relação, para efeitos de "catalogação", de todos os clichés da época natalícia, do presépio ao peru, passando pelas prendas e respectivo papel de embrulho. Pelo meio, a descrição de uma noite de consoada, da chegada dos convivas à altura em que as crianças se têm que ir deitar, sem que chegue a haver personagens "individuais" - apenas uma, colectiva, a "família".

Será assim um filme caloroso sobre a felicidade familiar no aconchego da noite de Natal? Em parte sim, em parte não. Em parte sim, porque essa felicidade está lá, literalmente "estampada" numa profusão de cores, brinquedos e canções de natal, livre de qualquer "pathos" ou de tentativa de subversão - num certo sentido, há um lado "antropológico" no filme, que lhe vem desta vontade de reconstituição de uma celebração natalícia que possa estar de acordo com as memórias de toda a gente. Mas essa é já uma das razões que fazem com que "Inventário de Natal" não seja um filme assim tão caloroso: de alguma maneira a fixidez dos planos de presépio transmite-se às cenas humanas, e a certo ponto torna-se tudo na mesma coisa, é a própria mesa da consoada que aparece como uma representação idealizada e imobilizada de algo que já aconteceu há muito tempo. O momento em que, para o espectador, se confirma este pressentimento, dá-se com a entrada, na banda sonora, de um discurso do ex-presidente da República, Ramalho Eanes, que transforma "Inventário de Natal", em mais do que um sentido, num "filme de época". A "felicidade" fica assim concentrada numa "caixa de música", num simulacro de emoções que podem ser recordadas mas não verdadeiramente revividas - a sensação que fica é semelhante à de um reencontro com um brinquedo de infância, e é isso que faz de "Inventário de Natal" um filme muito mais triste do que, provavelmente, o seu realizador queria.