América Proibida
O tema é delicado: a propagação de ideias (e movimentos) de índole nazi na multi-racial América contemporânea. "América Proibida" era um projecto destinado a criar polémica e, de certa forma, só faria inteiro sentido se a criasse - ou seja, se não se desvanecesse pacificamente na paisagem aplanadora do "entertainment" mais ou menos insalubre. A polémica acabou por chegar antes do previsto, ainda durante a fase da montagem, processo do qual o realizador (inglês) Tony Kaye foi afastado por divergências com os produtores quanto ao "alinhamento" final do filme. Kaye, privado de qualquer opção quanto ao "final cut" (que passou por várias mãos, entre as quais as de Edward Norton, protagonista do filme), desvinculou-se, tanto quanto possível, do projecto. "América Proibida" passou assim a ser um "filme sem autor", supostamente mais digerível do que na concepção inicial de Kaye, e é provável que o seu pouco rigor (na nomeação e definição do problema que aborda, assim como nas suas propostas de resolução) seja um resultado desse descentramento - e não deixa de ser curioso que, mesmo assim, "América Proibida" se tenha prestado às mais diversas e antagónicas leituras: para uns um panfleto que se limita a recitar os preceitos da mais básica cartilha anti-racista, para outros uma desonesta apologia de tudo o que falsamente viria denunciar. Nem uma coisa nem outra, apesar dos clichés atirados pelos defensores da primeira hipótese, e apesar dos riscos (figurativos, inclusivamente) que justificam a opção de quem defende a hipótese contrária. Mas parecem existir dois filmes em "América Proibida", um sobre o neo-nazismo, outro sobre a relação entre dois irmãos (as personagens de Edward Norton e Edward Furlong), e é no ponto em que esses dois filmes se tocam que se pode encontrar o que há aqui de mais estimulante. Até porque enquanto "filme de tese", "América Proibida" é relativamente simplista, muito cauteloso, e incapaz de contornar os clichés que se lhe deparam no caminho: a explicação para a génese das ideias e movimentos neo-nazis é a do costume (condições socio-economicas difíceis num meio polvilhado de imigrantes das mais diversas proveniências), e a descrição das actividades da organização, cujos membros são grotescos e boçais (à parte Norton), também não avança muito para além da mais comum das observações. Consciente desta relativa banalidade, Kaye vê-se forçado a complicar um pouco as coisas, e a encarar o neo-nazismo como uma espécie de semente de ódio, que se propagaria às comunidades por ele atacadas (a negra, a hispânica, etc) numa espiral de violência sem resolução à vista - e no final do filme, já depois de todas as "reconversões" (de Norton, primeiro, de Furlong, depois), é um negro quem mata Edward Furlong. Toda a gente sabe, no entanto, que o nazismo ("neo" ou não) não se pode limitar a uma explicação na esfera social, e que por mais complexa que esta seja parece sempre insuficiente para abarcar toda a enormidade do fenómeno. Há, e a História prova-o, uma dimensão na fronteira do inexplicável, à beira do irracional, na influência e no poder sedutor do ideário nazi. Uma dimensão que tem a ver com questões simbólicas (e nada aposta na força dos símbolos como o nazismo) e, no fundo, com um imaginário (e nada como o nazismo apostou na criação desse imaginário, ou seja, dessas imagens). "América Proibida", é aqui que se torna verdadeiramente interessante, não ignora essa dimensão - e por isso, é também aqui que os equívocos terão tendência a gerar-se. A força simbólica do nazismo aparece (confunde-se, até) em pleno na relação dos irmãos Norton e Furlong: depois da morte do pai, Norton é aos olhos de Furlong o mais parecido com uma "father figure", em todo o caso o único modelo que ele crê ser possível seguir. Subtilmente, o filme, apesar de parecer ser conduzido pela personagem de Norton, obedece muito mais ao olhar de Furlong, e isto desde a primeira sequência. Quer dizer, é lícito ver no olhar do filme sobre o corpo estilizado, tatuado e "endeusado" de Edward Norton apenas a manifestação do olhar de admiração que sobre ele tem o irmão - repare-se como nos planos em que o corpo de Norton se faz "ícone" (em "slow motion" e tudo) a montagem vem sempre subjectivar esse olhar e fazê-lo corresponder ao da personagem de Furlong. O culto do corpo perfeito não era só uma das pedras basilares da propaganda nazi (veja-se o "Olympia" de Leni Riefenstahl) mas acima de tudo a maior expressão daquilo que o nazismo tinha, supostamente, para oferecer: uma redenção, uma superação do humano rumo ao semi-endeusamento, e é esta dimensão, à margem de qualquer explicação social ou estritamente racional, que "América Proibida" tem o mérito de fazer manifestar. O nazismo aparece, portanto, como um gigantesco logro, e daí que o olhar do filme sobre as personagens de Norton e Furlong seja um olhar condoído, um olhar de quem sabe que eles são vítimas da tragédia em que aceitaram participar. Uma tragédia que começa domesticamente, naquele pacato almoço de família subitamente interrompido pela irrupção do nazismo (Norton insultando o namorado judeu da mãe), primeira manifestação de um mal que se gera dentro e corrói por dentro - "América Proibida" é, também e no seu melhor, uma tragédia familiar.
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O tema é delicado: a propagação de ideias (e movimentos) de índole nazi na multi-racial América contemporânea. "América Proibida" era um projecto destinado a criar polémica e, de certa forma, só faria inteiro sentido se a criasse - ou seja, se não se desvanecesse pacificamente na paisagem aplanadora do "entertainment" mais ou menos insalubre. A polémica acabou por chegar antes do previsto, ainda durante a fase da montagem, processo do qual o realizador (inglês) Tony Kaye foi afastado por divergências com os produtores quanto ao "alinhamento" final do filme. Kaye, privado de qualquer opção quanto ao "final cut" (que passou por várias mãos, entre as quais as de Edward Norton, protagonista do filme), desvinculou-se, tanto quanto possível, do projecto. "América Proibida" passou assim a ser um "filme sem autor", supostamente mais digerível do que na concepção inicial de Kaye, e é provável que o seu pouco rigor (na nomeação e definição do problema que aborda, assim como nas suas propostas de resolução) seja um resultado desse descentramento - e não deixa de ser curioso que, mesmo assim, "América Proibida" se tenha prestado às mais diversas e antagónicas leituras: para uns um panfleto que se limita a recitar os preceitos da mais básica cartilha anti-racista, para outros uma desonesta apologia de tudo o que falsamente viria denunciar. Nem uma coisa nem outra, apesar dos clichés atirados pelos defensores da primeira hipótese, e apesar dos riscos (figurativos, inclusivamente) que justificam a opção de quem defende a hipótese contrária. Mas parecem existir dois filmes em "América Proibida", um sobre o neo-nazismo, outro sobre a relação entre dois irmãos (as personagens de Edward Norton e Edward Furlong), e é no ponto em que esses dois filmes se tocam que se pode encontrar o que há aqui de mais estimulante. Até porque enquanto "filme de tese", "América Proibida" é relativamente simplista, muito cauteloso, e incapaz de contornar os clichés que se lhe deparam no caminho: a explicação para a génese das ideias e movimentos neo-nazis é a do costume (condições socio-economicas difíceis num meio polvilhado de imigrantes das mais diversas proveniências), e a descrição das actividades da organização, cujos membros são grotescos e boçais (à parte Norton), também não avança muito para além da mais comum das observações. Consciente desta relativa banalidade, Kaye vê-se forçado a complicar um pouco as coisas, e a encarar o neo-nazismo como uma espécie de semente de ódio, que se propagaria às comunidades por ele atacadas (a negra, a hispânica, etc) numa espiral de violência sem resolução à vista - e no final do filme, já depois de todas as "reconversões" (de Norton, primeiro, de Furlong, depois), é um negro quem mata Edward Furlong. Toda a gente sabe, no entanto, que o nazismo ("neo" ou não) não se pode limitar a uma explicação na esfera social, e que por mais complexa que esta seja parece sempre insuficiente para abarcar toda a enormidade do fenómeno. Há, e a História prova-o, uma dimensão na fronteira do inexplicável, à beira do irracional, na influência e no poder sedutor do ideário nazi. Uma dimensão que tem a ver com questões simbólicas (e nada aposta na força dos símbolos como o nazismo) e, no fundo, com um imaginário (e nada como o nazismo apostou na criação desse imaginário, ou seja, dessas imagens). "América Proibida", é aqui que se torna verdadeiramente interessante, não ignora essa dimensão - e por isso, é também aqui que os equívocos terão tendência a gerar-se. A força simbólica do nazismo aparece (confunde-se, até) em pleno na relação dos irmãos Norton e Furlong: depois da morte do pai, Norton é aos olhos de Furlong o mais parecido com uma "father figure", em todo o caso o único modelo que ele crê ser possível seguir. Subtilmente, o filme, apesar de parecer ser conduzido pela personagem de Norton, obedece muito mais ao olhar de Furlong, e isto desde a primeira sequência. Quer dizer, é lícito ver no olhar do filme sobre o corpo estilizado, tatuado e "endeusado" de Edward Norton apenas a manifestação do olhar de admiração que sobre ele tem o irmão - repare-se como nos planos em que o corpo de Norton se faz "ícone" (em "slow motion" e tudo) a montagem vem sempre subjectivar esse olhar e fazê-lo corresponder ao da personagem de Furlong. O culto do corpo perfeito não era só uma das pedras basilares da propaganda nazi (veja-se o "Olympia" de Leni Riefenstahl) mas acima de tudo a maior expressão daquilo que o nazismo tinha, supostamente, para oferecer: uma redenção, uma superação do humano rumo ao semi-endeusamento, e é esta dimensão, à margem de qualquer explicação social ou estritamente racional, que "América Proibida" tem o mérito de fazer manifestar. O nazismo aparece, portanto, como um gigantesco logro, e daí que o olhar do filme sobre as personagens de Norton e Furlong seja um olhar condoído, um olhar de quem sabe que eles são vítimas da tragédia em que aceitaram participar. Uma tragédia que começa domesticamente, naquele pacato almoço de família subitamente interrompido pela irrupção do nazismo (Norton insultando o namorado judeu da mãe), primeira manifestação de um mal que se gera dentro e corrói por dentro - "América Proibida" é, também e no seu melhor, uma tragédia familiar.