Uma força inegável

Não faltará quem, a propósito deste "Zona J", venha invocar os fantasmas televisivos da recente série "Ballet Rose", também assinada por Leonel Vieira, para, de uma forma simplista, desvalorizar o projecto, correcta execução de uma narrativa linear e de fraca amplitude. Nada de mais injusto: "Zona J" terá defeitos (falha na construção de algumas personagens-chave, banaliza, por vezes, o romance entre os adolescentes, impõe excessivos estereótipos de comportamento); possui, contudo, uma força inegável no modo como retrata o microcosmos dos subúrbios e como integra a diferença étnica no tecido social, não apenas a nível do argumento mas sobretudo no tratamento da imagem, em planos de luminosa intensidade e nervosa tensão. No mundo marginal dos bairros suburbanos, constrói-se um quase caricatural romance entre um Romeu negro, sonhando com o regresso mítico a uma Angola que nunca conheceu, e uma Julieta da pequena burguesia branca, filha da dona de uma loja de florista de um centro comercial.
O pano de fundo para este miniatural "West Side Story" lisboeta passa pelos caminhos do racismo quotidiano (o amante da mãe a sublinhar a oposição rácica, ou a descriminação no trabalho e nas oportunidades sociais), pela sobrevivência à custa de roubos e de astúcias de sobrevivência, ou pela criação de um jargão próprio, código forjado na resistência a um inimigo poderoso e implacável. A figura do patrão das obras funciona como o sinal óbvio dessa omnipresente ameaça, a forçar o recurso à transgressão. Existe na construção da estratégia ficcional um desejo de eficácia que poderá associar-se a uma marca de produtor, como se Tino Navarro (cuja regular presença física nos filmes lembra brincadeiras autorais, à la Hitchcock) constituísse elo de união entre a diversidade dos filmes que supervisiona pela transparência dos objectivos expostos.
Uma coisa é certa: Leonel Vieira (não vimos o seu filme anterior, por estrear, "A Sombra dos Abutres") consegue, naquela que acaba por fazer figura de primeira obra, uma interessante façanha: lidar com todo o tipo de "clichés" de uma forma sóbria e crua. Sequências como a do "slalom" do carro roubado entre o fluxo do trânsito, em contramão, arriscada metáfora de uma aventura ao arrepio de todas as convenções, possui um inesperado peso numa linguagem despojada e seca, mau-grado alguns escusados rodriguinhos (a morte à beira-mar ou o algo patético lanchinho na pastelaria) com que força o estereótipo pseudo-romântico.
O rigor de enquadramento nas cenas em que se prefigura a quadrilha protagonista do trágico epílogo, ou o modo como se filma a inóspita realidade da selva de betão, contrasta, no entanto, com uma certa facilidade no tratamento dos espaços do centro comercial e com a descuidada intrusão de personagens anedóticas, vindas de uma qualquer indesejável "sitcom" — a freguesa da florista que vai fazer queixa à mãezinha, ou o supervilão de José Pedro Gomes, num registo que não convém à contenção quase trágica da acção principal.

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Não faltará quem, a propósito deste "Zona J", venha invocar os fantasmas televisivos da recente série "Ballet Rose", também assinada por Leonel Vieira, para, de uma forma simplista, desvalorizar o projecto, correcta execução de uma narrativa linear e de fraca amplitude. Nada de mais injusto: "Zona J" terá defeitos (falha na construção de algumas personagens-chave, banaliza, por vezes, o romance entre os adolescentes, impõe excessivos estereótipos de comportamento); possui, contudo, uma força inegável no modo como retrata o microcosmos dos subúrbios e como integra a diferença étnica no tecido social, não apenas a nível do argumento mas sobretudo no tratamento da imagem, em planos de luminosa intensidade e nervosa tensão. No mundo marginal dos bairros suburbanos, constrói-se um quase caricatural romance entre um Romeu negro, sonhando com o regresso mítico a uma Angola que nunca conheceu, e uma Julieta da pequena burguesia branca, filha da dona de uma loja de florista de um centro comercial.
O pano de fundo para este miniatural "West Side Story" lisboeta passa pelos caminhos do racismo quotidiano (o amante da mãe a sublinhar a oposição rácica, ou a descriminação no trabalho e nas oportunidades sociais), pela sobrevivência à custa de roubos e de astúcias de sobrevivência, ou pela criação de um jargão próprio, código forjado na resistência a um inimigo poderoso e implacável. A figura do patrão das obras funciona como o sinal óbvio dessa omnipresente ameaça, a forçar o recurso à transgressão. Existe na construção da estratégia ficcional um desejo de eficácia que poderá associar-se a uma marca de produtor, como se Tino Navarro (cuja regular presença física nos filmes lembra brincadeiras autorais, à la Hitchcock) constituísse elo de união entre a diversidade dos filmes que supervisiona pela transparência dos objectivos expostos.
Uma coisa é certa: Leonel Vieira (não vimos o seu filme anterior, por estrear, "A Sombra dos Abutres") consegue, naquela que acaba por fazer figura de primeira obra, uma interessante façanha: lidar com todo o tipo de "clichés" de uma forma sóbria e crua. Sequências como a do "slalom" do carro roubado entre o fluxo do trânsito, em contramão, arriscada metáfora de uma aventura ao arrepio de todas as convenções, possui um inesperado peso numa linguagem despojada e seca, mau-grado alguns escusados rodriguinhos (a morte à beira-mar ou o algo patético lanchinho na pastelaria) com que força o estereótipo pseudo-romântico.
O rigor de enquadramento nas cenas em que se prefigura a quadrilha protagonista do trágico epílogo, ou o modo como se filma a inóspita realidade da selva de betão, contrasta, no entanto, com uma certa facilidade no tratamento dos espaços do centro comercial e com a descuidada intrusão de personagens anedóticas, vindas de uma qualquer indesejável "sitcom" — a freguesa da florista que vai fazer queixa à mãezinha, ou o supervilão de José Pedro Gomes, num registo que não convém à contenção quase trágica da acção principal.