Psico

Entendamo-nos: "Psycho" de Gus Van Sant não é um "remake" de "Psycho" de Hitchcock, mas uma instalação de arte que instrumentaliza o ponto de partida para o seguir plano por plano. Van Sant re-usa uma série de sinais para sublinhar o gesto original. Não deixa de ser curiosa a coincidência de "Psico", de Gus Van Sant, estrear entre nós precisamente na altura em que está patente, no Centro Cultural de Belém, uma peça do artista Douglas Gordon, que consiste na projecção do clássico de Alfred Hitchcock, decomposto em câmara lenta, fotograma por fotograma, de forma a estender-se por 24 horas. A importância desta hipótese de relação passa pela recusa da quase totalidade das leituras do "Psycho" de Van Sant como um "remake" de Hitchcock, submetendo-o por isso a preconceituosas e pré-fabricadas regras de comparação. Mesmo quem tem graves lacunas de compreensão do sistema que criou o cinema clássico americano se julga capaz de, às cegas, defender a inviolabilidade do original, e de, por puro reaccionarismo, pedir contas ao presente por não ter respeitado o passado. E então vêm as sacrossantas exigências de coerência, estabelecendo quilometragens e diferenças de preço, como se a modernidade do projecto se medisse por tão comezinhas balizas. Entendamo-nos, pois: "Psycho" de Gus Van Sant não é um "remake" de "Psycho" de Hitchcock, mas uma "instalação" que instrumentaliza o ponto de partida para o seguir plano por plano. Aliás, a opção de mimetizar o objecto fílmico original, tomando-o como um ícone da modernidade vale, desde logo, como gesto e aponta para o valor do conceito em si. Por isso, o mínimo que se nos exige, mesmo que detestássemos o resultado final, é respeitar os trâmites do protocolo artístico que se desencadeou, incluindo uma cuidadosa encenação de semelhanças e diferenças, a apresentação de fotos de rodagem como parte do objecto total e a repetição, que tanto irritou alguma crítica susceptível, do ritual de estreia sem visionamentos prévios. O objectivo de criar um valor de duplicação realça a mais-valia da intervenção pontual sobre as imagens e os sons, próximo do "ready-made" de Gordon ou da revisita sistemática e icónica das auto-exposições fotográficas de uma Cindy Sherman, por exemplo. Neste contexto, assume relevância a vampirização da banda sonora de Bernard Herrman ou a cópia do genérico de Saul Bass, colorindo-o, e, assim, dando o tom geral à intervenção artística, que se pretende operar sobre "Psycho": colorir significa pintar a diferença, descontextualizar o objecto, re-usar uma série de sinais para sublinhar o gesto. Não se trata de "colorizar" para garantir a comercialidade de um "velho e imprestável" clássico, mas o exacto contrário da criminosa táctica dos magnates do vídeo: assegura-se a eternidade do original por se lhe contrapor o diferente que se lhe cola como duplo. A ironia do projecto encontra o seu suporte em diferentes marcas de alteridade: logo de início, o aperfeiçoamento técnico permite não cortar o plano de grua, que nos introduz no quarto de hotel; a aparição de Hitchcock, à porta do escritório, mantém-se em "pastiche", mas a silhueta escultórica do mestre está em relação com a presença do novo autor que com ele dialoga ? Gus Van Sant auto-representa-se, aceitando as regras da brincadeira hitchockiana; a escolha da actriz Anne Heche, conotada, apesar de si própria, pela imprensa e pela moralidade dominante, com a sua homossexualidade, não pode deixar de alterar a personagem de Marion, conferindo-lhe uma agressividade que Janet Leigh estava longe de possuir; a figuração de Vince Vaughn como um anti-Tony Perkins obriga a uma sobrecarga de efeminação para aproximar o físico imponente do actor da fragilidade hiper-vulnerável do Norman Bates original. E um sub-texto "gay" poderá tornar-se legível para quem queira descobrir o autor de "My Own Private Idaho" neste pessoalíssimo projecto de duplicação. Atente-se, por exemplo, na que é, porventura, a supremamente irónica diferença: o Bates de Van Sant substitui a "Eroica" de Beethoven por um disco de Judy Garland. Estamos, portanto, perante, a evidência de um palimpsesto, de um texto fílmico que se reescreve por cima de outro, não iludindo as marcas de citação e de cópia, antes as sublinhando, o que justifica o que tantos apressadamente arrumaram na gaveta das simplificações excessivas. Van Sant, ao depor a sua recontextualização sobre o "manuscrito" original, faz explodir áreas de não-dito e carrega nas tintas: a masturbação de Bates na cena de "voyeurismo", a revista pornográfica que substitui o misterioso livro de capa preta, ou o museu luminoso de pássaros empalhados, que metamorfoseia a escura cave, onde se esconde o cadáver da mãe, não devem interpretar-se como manifestações de mau gosto, mas só como marcas de um outro gosto, de um outro olhar, atento à invariabilidade do referente e desperto para a variabilidade do gesto. Na mesma linha se devem entender certas clarificações, onde antes estavam subentendidos e elipses (o empregado que diz "esqueceu-se da bagagem", em vez de um simples estender da mala, por exemplo): a segunda instância necessita de uma zona de óbvio, que a matriz pode dispensar. Fundamental se torna, pois, entregar a fulcral personagem do psiquiatra que explica o filme (Hitchcock referia-se-lhe, de forma irónica, como o seu salvador), a uma imagem carismática, a de Robert Forster. Aliás, o carácter elucidativo do discurso (em Hitchcock, como em Van Sant), ainda que contrastando com a visualização da loucura na cena seguinte, em que Bates segue as ordens da "mãe" e resiste a enxotar a mosca, funciona como a permissiva abertura para uma nova legibilidade do texto. Se a revisitação ao filme de Hitchcock se faz por meio de matérias fílmicas, não significa que tenhamos obrigatoriamente que a fechar nos estreitos limites da narratividade, que tem marcado (em excesso) o acesso ao cinema como arte. No momento em que as artes performativas estão mais abertas do que nunca a um discurso de contaminação e de intercâmbio, não faz sentido delimitar o cinema, por excelência a arte-plataforma de cruzamentos e de intertextualidades, fechando-o numa comunicabilidade imediatista. E a crítica tem de estar atenta e não permanecer acantonada numa cinefilia autista divorciada das outras artes.

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Entendamo-nos: "Psycho" de Gus Van Sant não é um "remake" de "Psycho" de Hitchcock, mas uma instalação de arte que instrumentaliza o ponto de partida para o seguir plano por plano. Van Sant re-usa uma série de sinais para sublinhar o gesto original. Não deixa de ser curiosa a coincidência de "Psico", de Gus Van Sant, estrear entre nós precisamente na altura em que está patente, no Centro Cultural de Belém, uma peça do artista Douglas Gordon, que consiste na projecção do clássico de Alfred Hitchcock, decomposto em câmara lenta, fotograma por fotograma, de forma a estender-se por 24 horas. A importância desta hipótese de relação passa pela recusa da quase totalidade das leituras do "Psycho" de Van Sant como um "remake" de Hitchcock, submetendo-o por isso a preconceituosas e pré-fabricadas regras de comparação. Mesmo quem tem graves lacunas de compreensão do sistema que criou o cinema clássico americano se julga capaz de, às cegas, defender a inviolabilidade do original, e de, por puro reaccionarismo, pedir contas ao presente por não ter respeitado o passado. E então vêm as sacrossantas exigências de coerência, estabelecendo quilometragens e diferenças de preço, como se a modernidade do projecto se medisse por tão comezinhas balizas. Entendamo-nos, pois: "Psycho" de Gus Van Sant não é um "remake" de "Psycho" de Hitchcock, mas uma "instalação" que instrumentaliza o ponto de partida para o seguir plano por plano. Aliás, a opção de mimetizar o objecto fílmico original, tomando-o como um ícone da modernidade vale, desde logo, como gesto e aponta para o valor do conceito em si. Por isso, o mínimo que se nos exige, mesmo que detestássemos o resultado final, é respeitar os trâmites do protocolo artístico que se desencadeou, incluindo uma cuidadosa encenação de semelhanças e diferenças, a apresentação de fotos de rodagem como parte do objecto total e a repetição, que tanto irritou alguma crítica susceptível, do ritual de estreia sem visionamentos prévios. O objectivo de criar um valor de duplicação realça a mais-valia da intervenção pontual sobre as imagens e os sons, próximo do "ready-made" de Gordon ou da revisita sistemática e icónica das auto-exposições fotográficas de uma Cindy Sherman, por exemplo. Neste contexto, assume relevância a vampirização da banda sonora de Bernard Herrman ou a cópia do genérico de Saul Bass, colorindo-o, e, assim, dando o tom geral à intervenção artística, que se pretende operar sobre "Psycho": colorir significa pintar a diferença, descontextualizar o objecto, re-usar uma série de sinais para sublinhar o gesto. Não se trata de "colorizar" para garantir a comercialidade de um "velho e imprestável" clássico, mas o exacto contrário da criminosa táctica dos magnates do vídeo: assegura-se a eternidade do original por se lhe contrapor o diferente que se lhe cola como duplo. A ironia do projecto encontra o seu suporte em diferentes marcas de alteridade: logo de início, o aperfeiçoamento técnico permite não cortar o plano de grua, que nos introduz no quarto de hotel; a aparição de Hitchcock, à porta do escritório, mantém-se em "pastiche", mas a silhueta escultórica do mestre está em relação com a presença do novo autor que com ele dialoga ? Gus Van Sant auto-representa-se, aceitando as regras da brincadeira hitchockiana; a escolha da actriz Anne Heche, conotada, apesar de si própria, pela imprensa e pela moralidade dominante, com a sua homossexualidade, não pode deixar de alterar a personagem de Marion, conferindo-lhe uma agressividade que Janet Leigh estava longe de possuir; a figuração de Vince Vaughn como um anti-Tony Perkins obriga a uma sobrecarga de efeminação para aproximar o físico imponente do actor da fragilidade hiper-vulnerável do Norman Bates original. E um sub-texto "gay" poderá tornar-se legível para quem queira descobrir o autor de "My Own Private Idaho" neste pessoalíssimo projecto de duplicação. Atente-se, por exemplo, na que é, porventura, a supremamente irónica diferença: o Bates de Van Sant substitui a "Eroica" de Beethoven por um disco de Judy Garland. Estamos, portanto, perante, a evidência de um palimpsesto, de um texto fílmico que se reescreve por cima de outro, não iludindo as marcas de citação e de cópia, antes as sublinhando, o que justifica o que tantos apressadamente arrumaram na gaveta das simplificações excessivas. Van Sant, ao depor a sua recontextualização sobre o "manuscrito" original, faz explodir áreas de não-dito e carrega nas tintas: a masturbação de Bates na cena de "voyeurismo", a revista pornográfica que substitui o misterioso livro de capa preta, ou o museu luminoso de pássaros empalhados, que metamorfoseia a escura cave, onde se esconde o cadáver da mãe, não devem interpretar-se como manifestações de mau gosto, mas só como marcas de um outro gosto, de um outro olhar, atento à invariabilidade do referente e desperto para a variabilidade do gesto. Na mesma linha se devem entender certas clarificações, onde antes estavam subentendidos e elipses (o empregado que diz "esqueceu-se da bagagem", em vez de um simples estender da mala, por exemplo): a segunda instância necessita de uma zona de óbvio, que a matriz pode dispensar. Fundamental se torna, pois, entregar a fulcral personagem do psiquiatra que explica o filme (Hitchcock referia-se-lhe, de forma irónica, como o seu salvador), a uma imagem carismática, a de Robert Forster. Aliás, o carácter elucidativo do discurso (em Hitchcock, como em Van Sant), ainda que contrastando com a visualização da loucura na cena seguinte, em que Bates segue as ordens da "mãe" e resiste a enxotar a mosca, funciona como a permissiva abertura para uma nova legibilidade do texto. Se a revisitação ao filme de Hitchcock se faz por meio de matérias fílmicas, não significa que tenhamos obrigatoriamente que a fechar nos estreitos limites da narratividade, que tem marcado (em excesso) o acesso ao cinema como arte. No momento em que as artes performativas estão mais abertas do que nunca a um discurso de contaminação e de intercâmbio, não faz sentido delimitar o cinema, por excelência a arte-plataforma de cruzamentos e de intertextualidades, fechando-o numa comunicabilidade imediatista. E a crítica tem de estar atenta e não permanecer acantonada numa cinefilia autista divorciada das outras artes.