A Queda do Império Romano
A carreira de Ridley Scott aparece, desde o início, sob o signo da irregularidade: depois de assinar dois filmes de culto, o primeiro "Alien" (1979) e, sobretudo, "Blade Runner - Perigo Iminente" (1982), estampou-se com o confuso "Chuva Negra" (1989), em que o seu gosto pelos efeitos visuais fáceis comprometia seriamente a simples e escorreita leitura da história e regressou, em parte, aos produtos de prestígio com o sobrevalorizado (e pseudo-feminista) "Thelma e Louise" (1991).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A carreira de Ridley Scott aparece, desde o início, sob o signo da irregularidade: depois de assinar dois filmes de culto, o primeiro "Alien" (1979) e, sobretudo, "Blade Runner - Perigo Iminente" (1982), estampou-se com o confuso "Chuva Negra" (1989), em que o seu gosto pelos efeitos visuais fáceis comprometia seriamente a simples e escorreita leitura da história e regressou, em parte, aos produtos de prestígio com o sobrevalorizado (e pseudo-feminista) "Thelma e Louise" (1991).
A partir daí parecia ter entrado em queda livre: "1492" (1992) era um pastelão histórico da pior espécie, festejando a viagem de Cristóvão Colombo com todos os bilhetes-postais e todos os lugares-comuns imagináveis. "G.I. Jane" (1997) constituía um inverosímil veículo para Demi Moore.
Por tudo isto, uma incursão do cineasta por um género com coordenadas tão específicas como o "peplum" deixava um certo medo. Género com pergaminhos no cinema italiano desde a década de 10, prolongando-se por alguns dos monumentos de exaltação mussoliniana e atingindo enorme popularidade nas décadas de 50 e 60, o "peplum" parte da história e do mito para construir uma narrativa aventurosa, muito pouco interessada na verdade histórica ou no psicologismo das personagens. Hércules, Ulisses ou Jasão cruzam-se assim com inventados heróis, entregues a colossos de carne e músculo, como o inesquecível Steve Reeves, recentemente falecido, ou a actores em fim de carreira com Rory Calhoun, protagonista do fabuloso "O Colosso de Rodes", o opus 1 de Sergio Leone.
No cinema clássico americano houve sempre a tentação do "peplum", mas ligada sobretudo a filmes bíblicos que a luta contra a televisão instituiu como campeões de bilheteira. Filmes com "A Túnica", "Salomé" ou o oscarizadíssimo "remake" de "Ben-Hur", ombreavam na década de 50 com a voga dos filmes "egípcios" - "O Egípcio" de Curtiz, "Terra dos Faraós" de Howard Hawks, para não falar de "Os Dez Mandamentos" de Cecil B. de Mille, aliás a "alma mater" do "género histórico-bíblico", nos Estados Unidos, desde a década de 20.
No período de crise que assistiu à queda do "studio system", apareceram alguns dos produtos mais interessantes do género, com relevo para uma produção italo-americana, o extraordinário "El Cid" (1961) - para muitos, um "western" mascarado de "peplum" - e o injustamente vilipendiado "A Queda do Império Romano" (1964), ambos assinados por um dos maiores realizadores da década anterior, Anthony Mann.
E se o tempo não foi clemente para as cenas religiosas de "Ben-Hur" (o espectáculo pagão resistiu muito melhor), ninguém se atreve hoje a escarnecer, como foi feito aquando da estreia, da "Cleópatra" (1963) de Mankiewicz. "Spartacus" (1960) de Kubrick parece ter beneficiado do estranho autorismo que o cinema pós-clássico lhe conferiu.
É neste contexto, e no desaparecimento gradual do género - tal como aconteceu com a "capa-e-espada", a que o Zorro de Banderas tentou dar novo fôlego - que tem de ler-se "Gladiador" de Ridley Scott, encenando um episódio que se centra no reinado de Marco Aurélio, o mesmo de "A Queda do Império Romano", desembocando no mundo dos gladiadores e do espectáculo de pão e circo, como em "Spartacus".
O argumento segue o esquema clássico: ao bom governante segue-se o imperador corrupto e sanguinário, Commodus, parricida e usurpador do trono ao escolhido de Marco Aurélio, precisamente o herói do filme, Maximus, general hispânico, modelo de coragem e de virtudes romanas. Como convém ao género, a traição vai ser lentamente castigada, mas até à sua consumação o nosso herói vê-se vendido como escravo. De escravo a gladiador, passando pelos circos do Norte de África, assistimos a uma via sacra que culmina em Roma, no Coliseu, com o confronto entre os dois "imperadores". Para que nada falte há a alusão a uma relação incestuosa do Imperador com a irmã, que por sua vez tem uma paixão antiga pelo general-gladiador.
Com todos os ingredientes, a que se junta uma produção cuidadosa que reconstitui uma bela Roma de cartão e tinta, "Gladiador" cumpre, pois, a sua função de entretenimento histórico, com momentos de autêntica emoção, sobretudo nas cenas de circo, mas também nas sequências de conspiração. Com um actor que parece fadado para estas aventuras, o possante Russell Crowe (o mesmo de "L.A. Confidencial", "O Informador"), "Gladiador" poderia aspirar a uma digna ressurreição do "peplum", se não fosse a imagem de marca que Scott insiste em impor ao filme.
Com efeito, se as sequências de acção funcionam na perfeição, o mesmo não poderá dizer-se dos sonhos e pesadelos que o realizador inventou para o herói. E o pior do imaginário visual de Scott desdobra-se em efeitos, sépias e câmaras lentas, para freudianamente configurar uma personagem que só tinha a ganhar em ser primária, transparente e forte.
É como se estivéssemos perante dois filmes, uma competente exibição de aventurosas peripécias e uma pirosa tentativa de psicanalisar um herói puro e duro. No melhor pano cai a nódoa.