Central do Brasil
"Central do Brasil" levanta problemas muito complicados sobretudo por via de uma entusiástica recepção universal: mal se alude ao título, jorram catadupas de críticas laudatórias, de prémios de interpretação, tudo coroado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim 1998 e com as nomeações para o Óscar de melhor filme estrangeiro e de melhor actriz, colocando Fernanda Montenegro em posição de glória nacional, uma espécie de Pelé das artes da representação. Outros sectores, mais informados sobre a história do cinema brasileiro, desataram a bradar por uma reincarnação de Glauber Rocha, por um regresso quase miraculoso a tempos áureos do passado recente, os do saudoso Cinema Novo, dos 60. O efeito parece, inclusive, ter sido benéfico para um "boom" interno, quer em termos de bilheteira, quer em termos de recepção crítica. Ora, o espanto abate-se sobre o espectador incauto, quando se apercebe que "Central do Brasil" não passa de um melodramazinho delicodoce, recheado de boas intenções e de possidónias soluções cinematográficas. Não há chavão de vida suburbana, nem bilhete-postal de Nordeste folclórico e devoto a que sejamos poupados. Da força telúrica do universo de Glauber nem sombra; do olhar acusador dos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos (como o perturbante "Vidas Secas"), ou de Ruy Guerra (da crueza de "Os Fuzis" à ironia de "Os "Deuses e os Mortos") nem o mais leve resquício. A montanha pariu um rato. Evitando as implicações políticas de temas candentes (os meninos de rua ou a sobrevivência por expedientes), o filme limita-se a alinhavar os ingredientes para uma receita segura: uma escrevedora de cartas, oportunista, mas de bom coração, cede aos instintos maternais recalcados e acompanha, no seu périplo pelo Brasil profundo, um menino órfão de mãe, em busca do pai que nunca conheceu. Pelo caminho, desfilam as notas sociológicas convenientes: a prostituta, nunca nomeada como tal, entregue como cromo ao talento histriónico de Marília Pera (o dueto com Fernanda Montenegro faz o pleno das estrelas brasileiras de indiscutível prestígio internacional), a alusão à venda de crianças para extracção de órgãos, o fundamentalismo evangélico, incarnado na figura do camionista compadecido, a eterna crise de seca no Nordeste, a religiosidade espectacular de romaria ao Bom Jesus. Recusa-se qualquer politização profunda das questões, o objectivo é apelar à lágrima fácil, no momento certo, com o céu em contrapicado, a criança, lacrimejante ou revoltada, a olhar de frente para a câmara, a técnica de Fernanda Montenegro a fazer o resto, capaz de passar do riso ao choro, do grito ao sussurro em "overacting" nem sempre controlado. A solução final, puxando por todos os cordelinhos do sentimento, repõe um desequilíbrio instável e devolve a criança aos irmãos e a sua companheira de jornada à sua solidão inicial. A chantagem emocional atinge o seu ponto extremo, num filme que prefere a exterioridade dos rodriguinhos à radicalidade de um melodrama assumido. Aliás, o problema fulcral de "Central do Brasil" resulta deste branqueamento temático e estilístico. Tudo se constrói com o cuidado extremo de um produto de "qualidade" para exportar, não levantando ondas, antes apelando para um lado recuperável e decorativo de um arremedo de neo-realismo, sem nervo nem intervenção social. Este miserabilismo militante, distribuído quanto baste por sequências de calculado efeito - da pobreza das mercearias de província ao delírio fanático das grutas dos milagres - retira força aos únicos momentos com alguma vida cinematográfica autónoma, os da estação de comboios na cidade grande e a sua extensão pela casa de Fernanda Montenegro. A ideia das cartas não enviadas e das sessões de análise da correspondência, com a amiga, na vil tristeza de um apartamento dos subúrbios pobres possuía potencialidades que Walter Salles desaproveita. Em vez disso, privilegia o choradinho programático, transformando as "vidas secas" das duas solitárias amigas em artificiais "vidas molhadas" por um dilúvio de falsas emoções, impregnadas de lágrima fácil e de água de rosas para americano ver.
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"Central do Brasil" levanta problemas muito complicados sobretudo por via de uma entusiástica recepção universal: mal se alude ao título, jorram catadupas de críticas laudatórias, de prémios de interpretação, tudo coroado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim 1998 e com as nomeações para o Óscar de melhor filme estrangeiro e de melhor actriz, colocando Fernanda Montenegro em posição de glória nacional, uma espécie de Pelé das artes da representação. Outros sectores, mais informados sobre a história do cinema brasileiro, desataram a bradar por uma reincarnação de Glauber Rocha, por um regresso quase miraculoso a tempos áureos do passado recente, os do saudoso Cinema Novo, dos 60. O efeito parece, inclusive, ter sido benéfico para um "boom" interno, quer em termos de bilheteira, quer em termos de recepção crítica. Ora, o espanto abate-se sobre o espectador incauto, quando se apercebe que "Central do Brasil" não passa de um melodramazinho delicodoce, recheado de boas intenções e de possidónias soluções cinematográficas. Não há chavão de vida suburbana, nem bilhete-postal de Nordeste folclórico e devoto a que sejamos poupados. Da força telúrica do universo de Glauber nem sombra; do olhar acusador dos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos (como o perturbante "Vidas Secas"), ou de Ruy Guerra (da crueza de "Os Fuzis" à ironia de "Os "Deuses e os Mortos") nem o mais leve resquício. A montanha pariu um rato. Evitando as implicações políticas de temas candentes (os meninos de rua ou a sobrevivência por expedientes), o filme limita-se a alinhavar os ingredientes para uma receita segura: uma escrevedora de cartas, oportunista, mas de bom coração, cede aos instintos maternais recalcados e acompanha, no seu périplo pelo Brasil profundo, um menino órfão de mãe, em busca do pai que nunca conheceu. Pelo caminho, desfilam as notas sociológicas convenientes: a prostituta, nunca nomeada como tal, entregue como cromo ao talento histriónico de Marília Pera (o dueto com Fernanda Montenegro faz o pleno das estrelas brasileiras de indiscutível prestígio internacional), a alusão à venda de crianças para extracção de órgãos, o fundamentalismo evangélico, incarnado na figura do camionista compadecido, a eterna crise de seca no Nordeste, a religiosidade espectacular de romaria ao Bom Jesus. Recusa-se qualquer politização profunda das questões, o objectivo é apelar à lágrima fácil, no momento certo, com o céu em contrapicado, a criança, lacrimejante ou revoltada, a olhar de frente para a câmara, a técnica de Fernanda Montenegro a fazer o resto, capaz de passar do riso ao choro, do grito ao sussurro em "overacting" nem sempre controlado. A solução final, puxando por todos os cordelinhos do sentimento, repõe um desequilíbrio instável e devolve a criança aos irmãos e a sua companheira de jornada à sua solidão inicial. A chantagem emocional atinge o seu ponto extremo, num filme que prefere a exterioridade dos rodriguinhos à radicalidade de um melodrama assumido. Aliás, o problema fulcral de "Central do Brasil" resulta deste branqueamento temático e estilístico. Tudo se constrói com o cuidado extremo de um produto de "qualidade" para exportar, não levantando ondas, antes apelando para um lado recuperável e decorativo de um arremedo de neo-realismo, sem nervo nem intervenção social. Este miserabilismo militante, distribuído quanto baste por sequências de calculado efeito - da pobreza das mercearias de província ao delírio fanático das grutas dos milagres - retira força aos únicos momentos com alguma vida cinematográfica autónoma, os da estação de comboios na cidade grande e a sua extensão pela casa de Fernanda Montenegro. A ideia das cartas não enviadas e das sessões de análise da correspondência, com a amiga, na vil tristeza de um apartamento dos subúrbios pobres possuía potencialidades que Walter Salles desaproveita. Em vez disso, privilegia o choradinho programático, transformando as "vidas secas" das duas solitárias amigas em artificiais "vidas molhadas" por um dilúvio de falsas emoções, impregnadas de lágrima fácil e de água de rosas para americano ver.