A Picada de Abelha: a mestria de Paul Murray

O romancista irlandês usa pontos de vista distintos, alardeando a sua mestria no desenvolvimento da trama e na caracterização das personagens.

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A Picada de Abelha, de Paul Murray, foi finalista do prémio literário Booker em 2023 David Levenson/Getty Images
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Nunca será demais mencionar, quando se trata da riquíssima literatura irlandesa, a importância da família como pedra basilar de toda uma cultura específica que se alimenta de dramas e confrontos, velhos de séculos, em que a escassez económica, a pobreza social e as escaramuças sem fim determinam a criatividade narrativa.

Apesar das rápidas e drásticas alterações a que o núcleo familiar tem sido sujeito, nas quatro últimas décadas — os chamados “Celtic Tiger Years”, com um crescimento económico surpreendente e um óbvio impacto em todas as esferas da sociedade —, os conflitos em família continuam a alimentar a criatividade de escritores como Anne Enright, Sally Rooney, Emma Donoghue, Claire Keegan, para só mencionar alguns que exploram, exaustivamente, a forma como os laços que unem (e desunem) pais e filhos, casais, amigos e amigas, habitantes de uma cidade (em geral, pequena, claustrofóbica). Confinados a um círculo restrito que reflecte as hesitações, os medos, as alegrias e a complexidade das relações, procuram a afirmação de uma identidade — que se expande entre Oscar Wilde e James Joyce até Colm Tóibín — em permanente sobressalto e profundamente alterada pela globalização.

Paul Murray, cujos romances são presença assídua em listas dos mais prestigiados prémios literários, compõe, em A Picada de Abelha, uma dramática, pungente, sombria e simultaneamente hilariante saga familiar. Trata-se dos Barnes: o pai Dickie, a mãe Imelda, a filha Cass e o filho PJ.

A acção decorre numa pequena cidade das Midlands, anos depois do crash económico de 2008. A abundância de um passado recente, quando Dickie prosperava com o seu negócio de venda de automóveis, está a dar lugar a uma interminável crise financeira. A dinâmica familiar não funciona e cada um dos seus membros tenta escapar ao sufoco de vidas sem sentido, escolhendo caminhos diferentes, em direcções individualistas que se revelam espinhosas e cheias de perigos.

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A acção passa-se no centro da Irlanda, nas Midlands, onde Murray encontra “uma cristalização da experiência irlandesa” Wirestock/getty images

As expectativas que projectam para uma existência, dita normal, são constantemente frustradas pela instabilidade económica, pela crise ambiental, por preconceitos como a homofobia e as dificuldades em lidar com a adolescência, pela infidelidade e principalmente pelos segredos que cada um guarda dentro de si, evitando revelações embaraçosas e confrontos.

Imelda, espampanante e fútil — é ela, supostamente, a protagonista do episódio da picada da abelha introduzida no seu véu de noiva, no dia do casamento, o que a obrigou a permanecer com o intumescido rosto tapado durante toda a cerimónia —, ressente-se por não poder usar o cartão de crédito com a largueza que lhe é devida; Dickie, deprimido e ausente, cansado de um negócio em franca derrapagem, abraça as ideias dos sobrevivencialistas e escapa-se para a floresta onde está a construir um bunker para o dia do apocalipse; Cass mantém uma estranha amizade com outra adolescente, Elaine, e debate-se com as contradições e desafios próprios da idade (é exemplar a forma como o autor nos leva a habitar a cabeça e o corpo destas duas jovens mulheres); quanto a JP, os seus 12 anos estão repletos de caos, angústias e descobertas. No espesso tecido de mentiras, omissões, desconhecimentos, traições e deturpações — a metáfora da picada de abelha serve para ilustrar como uma cadeia de acontecimentos nefastos pode ser desencadeada por um incidente fugaz —, a unidade familiar, espelho de uma sociedade em crise, sofre a quebra de laços emocionais, psicológicos e físicos.

Murray conta as histórias de cada um a partir de pontos de vista distintos, alardeando a sua mestria no desenvolvimento da trama e na caracterização das personagens, deixando para o final um desfecho surpreendente e revelador.

Numa entrevista, o autor confessou que a escrita deste livro — que se alargou sem ele dar conta — lhe agradou particularmente. Essa alegria e facilidade é visível, pela fluidez da narrativa e pelo constante equilíbrio entre o drama e a comédia.

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