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Cristina Ferreira de Castro sempre leu o Público, mas não seguia a página de Facebook do jornal. Fez o like número 1.000.000 e chegámos até ela. Descobrimos que nasceu numa aldeia, mas sempre sonhou viver numa grande cidade. Que estudou design, mas que se chegou a imaginar-se chef de cozinha. E que decidiu abandonar o trabalho como designer para se dedicar a descobrir (e provar) toda a doçaria portuguesa.

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Cristina, uma história (doce) num milhão

Moelas picantes. Lembra-se bem: tinha uns oito anos e o primeiro jantar que Cristina Ferreira de Castro preparou para a família toda foi moelas picantes. Vivia nessa altura na aldeia, Sousela, concelho de Lousada. Brincava na rua, subia às árvores, aos domingos faziam-se assados, mesa farta, a família junta, sempre gostaram de comer bem. No Inverno, da janela do quarto, avistava a neve no alto da serra, lá ao longe. Nessa altura, não pensava no futuro.

O pai tinha uma empresa de mármores e granitos, e era presidente da junta, a mãe estava à frente daquele que era há várias gerações o único minimercado da aldeia, inaugurado pelo bisavô, e aos domingos a família saía de carro para ir almoçar fora — chegavam a fazer muitos quilómetros. “Então o que é que se come aqui?” — perguntava o pai, António, quando chegava ao destino. E, com o tempo, Cristina começou a perguntar: “Então, qual é o docinho daqui?”

Também iam às vezes à Doçaria Mário, que tem fama de ter sido uma “verdadeira catedral da discussão política em Amarante, onde todos os dias, antes do almoço, se derrubava um governo, que à tarde era reconduzido, antes que o crepúsculo descesse sobre a vila”. Mas esta descrição de Miguel Sousa Tavares, no livro Não te deixarei morrer, David Crockett, e recitada de cor com orgulho pelo senhor Mário, 86 anos, que ainda encontramos à frente da bela casa de chá com vista para o Tâmega, remete para um tempo muito anterior ao nascimento de Cristina. Ela, criança ainda, e a família iam à Doçaria Mário não para discutir política, mas para beber chá e comer doces — papos d’anjo, foguetes, sequilhos, lérias...

Cristina tem 37 anos, é casada, não tem filhos (“pensamos nisso, mas agora não”), saiu de Sousela há muitos anos, para ir para a universidade em Lisboa, e ficou. Vive no bairro de Alvalade. Formou-se em Design de Comunicação, especializou-se em Web Design, trabalhou em agências de publicidade, em ateliers, em empresas de multimédia, depois foi freelancer, tinha muitos clientes, que lhe davam “muito trabalho”, e um dia... enfim. Já tinha feito 30 anos e não estava satisfeita com o que fazia.

Há tempos convidou os amigos para um jantar em sua casa — aquela felicidade de cozinhar moelas picantes aos oito anos, para a família? Pois, multiplicou-se. Satisfeita, verdadeiramente,  Cristina sente-se quando prepara metodicamente uma refeição para os amigos.

Convidou-os, então, para jantar. Pendurou na parede da sala um grande mapa de Portugal com muitos pioneses lá pelo meio. E quando estavam todos reunidos explicou: “Isto é o que eu vou fazer nos próximos anos. Vou a todos estes sítios assinalados no mapa, porque em cada um destes sítios há um doce para se conhecer.”

Há uma frase que diz muitas vezes: “Em qualquer sítio em Portugal há um docinho.” Pelo menos um.

Cristina Ferreira de Castro mandou embora a maioria dos clientes que tinha e anda há um ano e meio dedicada a um projecto de investigação e divulgação: um inventário dos doces portugueses. O primeiro de cinco livros que está a escrever sai no fim do ano, o site multimédia do projecto já existe, chama-se No Ponto. “Este é o desafio da minha vida.”

Nos últimos meses, voltou a Amarante, à casa do senhor Mário, e a muitas outras casas do país, para entrevistar doceiras e doceiros e filmá-los a fazer os doces mais emblemáticos dos locais onde vivem. Mas já contamos mais sobre este projecto. Para já: por que é que nos cruzámos com Cristina?

Porque há pouco mais de uma semana ela fez o que diz que faz todas as manhãs: abriu o site do PÚBLICO, para ler no computador as notícias ao pequeno-almoço. Só que nesse dia viu um banner que informava que o PÚBLICO estava quase a atingir o milhão de fãs na sua página do Facebook. “Queremos conhecer o rosto e a história de quem está por trás do número”, anunciava-se.

Usa pouco o Facebook, vai sempre directa ao site do jornal, mas achou piada. E naquela manhã foi mesmo, por acaso, a pessoa número 1.000.000 a tornar-se seguidora do jornal naquela rede social. Esta é a história de Cristina.

Os olhos de Cristina

Teria dois ou três anos quando começou a ficar estrábica. Os médicos nunca perceberam porquê. Talvez o problema tivesse tido origem numa queda. Certo é que Cristina via cada vez pior. As poucas memórias que tem até aos cinco anos estão relacionadas com os olhos. “Só os olhos, sempre os olhos.”

Todos os dias chorava quando o pai lhe punha as gotas e, porque chorava, era muitas vezes preciso repetir o processo, mais gotas nos olhos, até que as lágrimas não lavassem o medicamento e alguma coisa ficasse lá dentro.

Começou a usar óculos. Uns óculos pequeninos, como era a cara dela, castanhos, de massa. Ainda os tem. Odiava aqueles óculos.

Aos cinco anos decidiram operá-la. “Uma operação de dez horas. Foram dois médicos, cada médico operou um olho, ao mesmo tempo. Eram pai e filho. Foi num hospital privado do Porto.” Lembra-se de, antes de entrar na sala de operações, ver a mãe, Maria Carminda, “a chorar como se não houvesse amanhã”, de lhe darem, depois, uma “chupeta enorme” e pronto, mais nada. Quando acordou da operação, tinha os olhos tapados com pensos. “O médico disse-me: ‘Nos próximos três dias não podes tirar os pensos e não podes chorar.’ E eu desatei a chorar imediatamente. E estive três dias a chorar.”

Tinha medo — ainda hoje a assustam gestos banais como alguém aproximar-se com o dedo em riste, “tens aí uma pestaninha solta”. Salta. Não lhe toquem nos olhos. Não tem muitos medos para além desse — enfim, também não gosta de alturas, mas com isso lida melhor.

Ao quarto dia depois da cirurgia foi tirar os pensos. “Foi o pior dia da minha vida. Tinha dores horríveis. Demorei um dia inteiro a conseguir abrir os olhos. Fui de manhã tirar os pensos e só os consegui abrir à noite.”

Também se lembra bem das palavras de um dos médicos que a operou. “Os teus olhos são bonitos, mas não valem nada.” Os olhos da Cristina são verdes — “iguais aos da minha mãe” — e doces. São o seu ponto fraco.

Outra coisa que lhe disse o médico. “Agora podes dar os óculos ao gato. Mas um dia vais ter de voltar a usá-los.” Já não é estrábica, mas tem miopia e astigmatismo. Continua a detestar andar de óculos.

Da segunda vez em que vamos ter com Cristina, conhecer a sua casa em Alvalade — cheira a scones e a bolo de alfarroba, foi ela que fez, e há uma gata chamada Maria Bolacha, que se passeia entre o corredor e a sala — voltamos às histórias dos olhos. “Até usar óculos pela primeira vez, achava que as texturas eram algo que só se sentia na ponta dos dedos. Mas com os óculos percebi que também se viam. A textura de uma almofada. A textura de uma colcha. Da madeira...”

As memórias de infância de Cristina são mais variadas após a operação, como se verá adiante.

A inspiração do amor

Frequentou a escola secundária em Santo Tirso — escolheu Artes. Gostava de cinema, de teatro, de ir a exposições mas naquele tempo não encontrava ofertas culturais à altura dos seus desejos. Fazia-lhe confusão ter de percorrer 35 quilómetros, até ao Porto, para fazer qualquer uma destas coisas, sendo que, mesmo o Porto de então, “não é Porto de agora”. Estava farta. Terminado o 12.º ano, rumou a Lisboa. Havia muito tempo que pensava que tinha de deixar a aldeia para trás. “O Norte é muito frio, e não me dou com o frio, brrrr.”

Ainda pensou ser cozinheira. Mas “ficar sem vida para mais nada” assustava-a. Formou-se no IADE-Instituto de Arte, Design e Empresa, dividiu casa com amigas. E há 11 anos, mais coisa, menos coisa, conheceu o hoje marido. Começaram a namorar, foram viver juntos — para assinalar os dez anos de namoro casaram-se no ano passado. Se o pior dia da vida de Cristina foi o dia em que, depois da operação de dez horas, tirou os pensos dos olhos, o melhor “foi, sem dúvida, o dia do casamento”, em Guimarães.

Levou um vestido cor de pérola, estilo anos 30, uns sapatos vermelhos, mesmo anos 30, e o colar da bisavó que a mãe lhe ofereceu.

Não levou um ramo de flores na mão. “Levei um bouquê de pulso porque queria ter as mãos livres para dar abraços e beijinhos às pessoas.”

E claro que fez ela própria algumas sobremesas. Mas não o bolo de casamento, que foi em forma de jardim — um tabuleiro enorme com vasos de chocolate com flores comestíveis, “cada vasinho era uma fatia”. Tinha dito ao seu amigo, que lhe preparou a boda, o chef Álvaro Dinis Mendes, do restaurante Cor de Tangerina, que não queria um bolo de noiva “branquinho e cheio de rococós, queria um bolo muito colorido”. E ele, que a conhece bem, fez-lhe uma Primavera.

Os pais dela estão casados há mais de 50 anos. “E namoram todos os dias, completamente apaixonados, sempre foi assim.” Acha que o segredo de um amor tão longo deve ser “a paciência”.

Também acha que o seu amor vai durar para sempre. “Sou completamente apaixonada pelo meu marido.”

Antes que seja tarde

Pouco depois de fazer 30 anos voltou a pensar em mudar de vida, e, por arrasto, na “paixão pela comida”, no “prazer que dá ver outros comerem” o que faz. Ligou ao amigo de Guimarães — o tal que lhe fez o bolo em forma de jardim para o casamento — e pediu-lhe para ir passar as férias a trabalhar no restaurante dele. “Quero perceber se de facto é isto que quero fazer, trabalhar numa cozinha.” Ele respondeu: “Vou dar-te uma semana de trabalho para tu tirares de vez da cabeça a ideia de ser cozinheira.”

Ao segundo dia não tinha posição. O corpo estava habituado a dias passados sentada, ao computador, não a estar horas e horas de pé. Ainda assim, Cristina gostou de tudo. “Descascar cinco quilos de batatas? Uau! Não tinha posição, mas estava feliz.”

Mas e as viagens? Como ia viajar se tivesse um restaurante? E os concertos? E tudo o resto? E se pensasse em algo ligado à gastronomia que não passasse por uma cozinha?

Aceitou muitos trabalhos, todos os que conseguiu, para juntar algum dinheiro para poder vir a dar-se ao luxo de abrandar o ritmo como designer durante algum tempo para se dedicar a algo que a fizesse mais feliz. Estudou, pesquisou e um dia concluiu o seguinte: “Há muitos livros sobre doçaria portuguesa. Mas fazer um inventário dos doces, como o que posso fazer, ninguém fez ainda. Saber o que há em cada sítio, em cada cantinho... Em qualquer sítio em Portugal há um docinho. E em muitos sítios de Portugal há um docinho de pessoa a fazê-lo.”

Tem contactado cada câmara do país, em busca de informação (“que doces têm no concelho?”) e de apoios — de algumas recebeu feedback, de outras não, “às vezes é preciso ir lá pessoalmente, reunir, para ter uma resposta”. Ela é só uma e as câmaras são mais de 300. Faz-se aos poucos.

“É preciso trabalhar muito. Mas é impossível fazer tudo ao mesmo tempo. Isto é como na cozinha, se um bolo leva uma hora a fazer não vale a pena apressar, se pusermos o forno mais alto, ele só vai queimar. É isso que procuro fazer, tento levar as coisas com mais calma, porque no início, quando comecei com o projecto, estava ansiosa, queria fazer tudo ao mesmo tempo e também ter a certeza de que ia abarcar todos os doces de Portugal, mas... sei que nunca estarão todos.” Há que pensar, para relaxar um pouco, que haverá sempre hipótese de fazer “uma segunda edição revista e aumentada”.

Para já, “o critério é: ‘tem de ser uma especialidade daquele sítio e tem de ser algo que as pessoas quando forem a esse sítio conseguem provar e comprar’”.

Tem tido algumas surpresas desagradáveis. “Nalguns casos, já só há uma pessoa a fazer um determinado doce para vender. E, nalguns casos, já cheguei tarde de mais. A pessoa que fazia morreu (se tivesse ligado uns meses antes...) e não houve ninguém para a substituir.” Muitos doces estão a perder-se. Ou fazem-se de outro modo.

“Nalguns locais procuram fazer tudo muito mais rápido, muitas pessoas já usam ovos pasteurizados, suspostamente é mais seguro e já provei doces assim, e eram bem feitos, mas na doçaria conventual não resulta. Mas isto é só a minha opinião.”

A doçaria conventual é um caso especial. “É cara, gasta muitos ovos, muito açúcar, muita amêndoa, é difícil de se fazer. Uma doceira que entrevistei disse que às vezes recebe alunos de cozinha e os põe a partir e a separar ovos durante a manhã. À tarde já não aparecem. Queria encontrar as pessoas que fazem todos estes doces.”

Verão Azul na Póvoa

O pai António — que Cristina descreve como a sua “inspiração”, um homem divertido, “que sempre fez o que mais gostava”, uma “pessoa feliz”, que tem hoje 76 anos — teve um azar enorme: “Ter dois filhos que adoram animais. Ele não gosta nada.”

Quando eram pequenos, Cristina e o irmão levavam todos os animais que podiam para casa — o irmão é 11 anos mais velho, o nascimento de Cristina já foi “uma surpresa”, a mãe engravidou com “36 ou 37 anos, o que não era comum”. O primeiro de todos foi o cão Lunik. “Se o prendíamos, chorava. Se o soltávamos, ia para a porta da loja, que fica mesmo por debaixo da nossa casa, e quando passava uma moto ele ia a correr atrás. O meu pai ficou assustado com aquilo. Ainda alguém se magoava por causa do cão. E despachou o cão. Foi o maior desgosto. Chorámos dias e dias a achar que o cão tinha morrido, até que o meu pai disse que só o tinha levado para uma quinta. E, de facto, tinha. Chegámos a ir visitá-lo.” Depois, tiveram mais cães, gatos e periquitos. E o pai sempre a fugir deles.

No Verão, as férias eram na Póvoa de Varzim, com os avós, tios e primos. A certa altura Cristina e mais três primos começaram a passar as férias sozinhos no apartamento de uma tia — Cristina tem muitas tias, só o pai tem dez irmãos e a mãe, nove — que ficava mesmo em frente à praia e teve início aquilo a que se pode chamar o período Verão Azul. Lembram-se da série espanhola dos anos 80 que contava as aventuras de um bando de miúdos em férias no Sul de Espanha? Pois é parecido — excepto que na Póvoa a água é “muito fria” e “o mar parece uma máquina de lavar roupa”.

“E também não andávamos de bicicleta”, diz Cristina a rir.

Cristina, com os seus 11 anos, mais o primo Simão, da mesma idade, e as primas Sónia e Marta, de 15, 16 anos, passaram as primeiras férias de Verão sozinhos, os quatro, nesse apartamento e repetiram a proeza nos anos que se seguiram. Iam no primeiro ou segundo dia de férias e voltavam um dia ou dois antes das aulas recomeçarem. Eram três meses de aventuras.

“Havia regras. Cada um tinha de fazer a sua cama. Aos fins-de-semana os pais iam almoçar e passar o dia connosco. E deixar-nos dinheiro. As primas mais velhas cozinhavam. Eu e o Simão levantávamos a mesa, púnhamos a mesa, estendíamos a roupa, ajudávamos a limpar a casa, levar o lixo, comprar pão... o Simão trancou-nos uma ou duas vezes na rua.” Esquecia-se da chave dentro de casa.

A tia dona da casa fazia um controlo à distância: “Ela queria que nós fizéssemos horário de escola: que acordássemos às oito, para ir para a praia, que às 11h viéssemos para casa fazer o almoço e almoçar, para depois, à tarde, irmos para a praia novamente. Então às 11 da manhã ela ligava para saber o que estávamos a fazer para o almoço e como é que estava o tempo. Ora, a verdade, é que por vezes às 11 da manhã estávamos ainda a dormir! E tínhamos de aclarar a voz antes de falar — cantávamos e assim. Era o Simão a falar: ‘A praia está óptima, está espectacular.’ E do outro lado: ‘A sério? Mas aqui está a chover.’ E percebíamos que ainda nem tínhamos aberto as persianas porque tínhamos acabado de acordar.” Sim, lá fora estava a chover.

Cristina conta com alegria esses verões. Correu sempre tudo bem. A coisa mais grave que aconteceu foi darem cabo dos canos da casa-de-banho, porque leram mal as instruções de um ácido para os desentupir.

Durante três dias, tiveram de usar a casa-de-banho de uma tia de Marta e de Simão que vivia ao lado, “uma cúmplice” em várias situações, até juntarem dinheiro para o canalizador.

Nos “verões azuis” de Cristina ela e os primos aprendiam a resolver problemas.

Persistência e teimosia

Quando tinha o seu plano montado para o projecto da Doçaria Portuguesa, Cristina apresentou-o a alguns grandes amigos, que se apaixonaram como ela e que, agora, trabalham com ela, cada um na sua área — há o fotógrafo, Gonçalo Barriga, que fotografa cada doce, num estúdio improvisado na casa de Cristina. E a ilustradora Ana Gil. “Neste momento ninguém está a ganhar nada com isto, mas acreditamos que isto vai ser espectacular, estamos a fazer um excelente trabalho e é isso que faz com que todos os dias trabalhemos... se isto ganhar, ganhamos todos.”

Contactou, por fim, três pessoas com experiência, na expectativa que aceitassem o seu convite para serem consultores da obra — e eles aceitaram, para felicidade dela: Vergílio Gomes, investigador em História da Alimentação e autor de vários livros (o mais recente é Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa”); Isabel Maria Fernandes, directora do Museu Alberto Sampaio e do Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães, e Raquel Moreira, professora na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, investigadora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia da Nova e autora de Queijadas de Sintra. História de um Doce Regional.

Às vezes assusta-se um bocadinho com a dimensão do plano que traçou — uma colecção de livros, com tradução em inglês, que funcionará “como um guia/enciclopédia da doçaria portuguesa, no Norte, Centro Norte, Centro Sul, Alentejo e Algarve, e Ilhas”; o site No Ponto onde vai colocando os vídeos do que vai fazendo em cada localidade, algumas entrevistas, fotografias. “Procuramos doces que chegaram aos nossos dias pelas mãos habilidosas dos doceiros que preservaram tradições e pela persistência de investigadores da nossa história gastronómica. Mas não só: procuramos também doces que nasceram agora da dedicação de quem ama esta arte.” É assim que o projecto se apresenta oficialmente.

“Quando penso desistir ligo ao meu pai e ele diz-me sempre a mesma coisa: ‘com a idade que tenho (76 anos) ainda não desisti, tu também não podes desistir.’”

Quando chegamos a Sousela, à aldeia de Cristina, à casa onde cresceu — o minimercado, em baixo, a residência familiar em cima, a serra lá ao fundo — e falamos com António Castro, tudo fica mais claro. É um homem determinado.

Há uns dois ou três anos, conta-nos, estava na empresa dele e a funcionária que passa as facturas tinha-se ausentado. Mas era preciso emitir uma factura. Aos 70 e tal anos, António confrontou-se com este facto: estava na sua própria empresa e não conseguia fazer aquilo porque não sabia trabalhar com computadores. Não voltaria a acontecer. “Ali, eu sou a pessoa que tem de saber fazer tudo!”

Teve aulas de informática. Não disse nada a Cristina. Um dia informou-a: “Tenho um blogue. Não queres lá ir para me dares a tua opinião?” Foi assim que ela soube que o pai já andava pela Internet. “Abriu uma conta no Skype para falar comigo. Tem uma página no Facebook e vai fazendo likes na página do projecto”, conta Cristina de olhos a brilhar. “O meu pai é que devia ter a história dele contada!”

António foi presidente da junta de Sousela entre 1976 e 1982 (como independente) e depois cumpriu dois mandatos como vereador da câmara de Lousada, à qual também se candidatou para presidir. Orgulha-se da obra feita, nomeadamente na junta de freguesia. Dá um exemplo: a 1.ª classe de Cristina e dos meninos da geração dela ainda foi feita na “escola” que havia — que era, na verdade, apenas uma sala, numa casa sem casa-de-banho. A 2.ª classe já foi na escola a sério. “Fui eu que negociei a compra do terreno”, conta ele.

Durante muito tempo, Cristina associou a pouca presença do pai em casa à política. Por isso achava que a política era uma coisa horrorosa. “Da última vez que se candidatou fizemo-lo assinar um contrato onde se dizia que se ele ganhasse era o último mandato.”

Hoje, procura estar atenta e informada — apesar de as suas secções favoritas no PÚBLICO serem a Ciência e a Cultura — e vota sempre, e em função do projecto dos candidatos, do que acha que são capazes de fazer. Não tem um partido político. “Voto, em geral, à esquerda.”

As pessoas que a conhecem dizem-lhe que tem o feitio do pai. E o que é que isso significa? “Falo muito, como ele, às vezes de mais. A minha mãe é mais controlada, mais discreta. O meu pai está sempre a fazer coisas, eu também. Sou irrequieta e não me conformo com um não. O meu pai também é assim, não se fica pela primeira coisa que lhe dizem. Acho que somos persistentes.”

Jesuítas de onde?

A propósito, um episódio que Cristina nos contará, durante um almoço num restaurante indiano que fica bem perto da sua casa, e onde gosta de ir com o marido: um dia passou numa montra de uma pastelaria em Lisboa. Um papel anunciava que ali se vendiam “os genuínos jesuítas de Santo Tirso”. Entrou, pediu um ao balcão.

Trouxeram-lhe um e ela quando acabou de o comer chamou o homem que a servira, “e que parecia o dono”. Disse-lhe que achava que ele devia tirar aquele papel da montra. Em primeiro lugar, os jesuítas de Santo Tirso não levam amêndoas no topo, disse-lhe Cristina. Em segundo, têm muito menos recheio do que aqueles tinham. Aquilo eram jesuítas, mas não “os genuínos jesuítas de Santo Tirso”.

O homem não gostou. Não ia tirar papel nenhum. Ela respondeu-lhe que ele assim estava a enganar as pessoas. E foi-se embora. Passado uns dias foi a Santo Tirso, comprou uma caixa de jesuítas e voltou à tal pastelaria. Levou a caixa ao homem. Chamou-o de novo e pediu-lhe que provasse. Ele não deu o braço a torcer. Mas uns dias depois Cristina voltou a passar em frente à montra. “E o papel que anunciava os genuínos jesuítas de Santo Tirso já não estava lá.” Só mesmo os jesuítas.

As mulheres doceiras

Da mãe aprendeu muitas coisas preciosas, como cozinhar. “Nas sobremesas tem que se ter mais cuidado com as quantidades, nos salgados é muito a intuição. A minha mãe ensinou-me que sabemos se uma comida tem sal que chegue pelo cheiro. Não sei explicar isto, mas pelo cheiro da comida sei se ela tem falta de sal. A comida boa tem que ser feita com tempo e com bons ingredientes.”

Organizaram, algumas vezes, concursos de culinária, quando era miúda. Ela e a mãe competiam uma com a outra. O júri era constituído pelo pai e pelo irmão, que davam pontos. Só uma vez ganhou à mãe — “a minha mãe é a melhor cozinheira” —, com um prato de codornizes no forno. Deu-se ao trabalho de fazer os ninhos das codornizes com batata palha. Os homens da casa gostaram. “Acho que foi mais pela apresentação.”

De resto, cozinhar, na família, era essencialmente uma coisa de mulheres. Aliás, a maior parte da doçaria tradicional que Cristina pesquisa é feita por mulheres que aprenderam as receitas com outras mulheres — avós, mães, amigas. “Geralmente ligo a câmara, começo a filmar e deixo-as falar. Conheci uma que dizia que fazer doces era estar todos os dias ao lado da mãe, que tinha morrido. As pessoas fazem isto com muito amor. Muitas vezes, não se dá o valor ao trabalho e à emoção que as pessoas põem no que fazem.”

Há doces que levam horas a fazer, há doces que levam mais ainda. “Antes de Páscoa vamos a Torre de Moncorvo e ouvimos pelas ruas o barulho que fazem as ‘cobrideiras’ [nome dado às mulheres que fazem as Amêndoas Cobertas de Moncorvo] nas suas casas. As amêndoas são dispostas nuns recipientes enormes, as ‘cobrideiras’, que usam uns dedais nas pontas dos dedos (porque as amêndoas estão muito quentes), põem umas colherinhas de calda de açúcar em cima das amêndoas e mexem-nas com as mãos. Repetem isto de 15 em 15 minutos”, com o recipiente permanentemente aquecido. “Oito horas por dia. Há amêndoas que levam oito dias a fazer, há amêndoas que levam um mês. São lindas. Parecem corais.” No vídeo que disponibilizou no site, Cristina chamou-lhes “os diamantes de Torre de Moncorvo.”

Sobre a história e as origens dos doces é, muitas vezes, difícil encontrar informação. Muitas doceiras não sabem de onde vem o doce que fazem, o que não é de estranhar porque as origens de muitos são demasiado longínquas. “Os pitos de Santa Luzia, de Vila Real, por exemplo. Uma das teorias é que é um doce conventual. Eu tenho quase a certeza de que não é e que, provavelmente, nasceu na casa de uma família mais abastada, que teria acesso a determinados ingredientes. Não é muito doce, tem aliás pouco açúcar, pelo que poderia até ter nascido numa casa pobre. E é feito com uma espécie de massa quebrada, o recheio é um doce de abóbora... abóbora e a chila estão em todo o lado no Norte. Mas, para mim, não chega dizer ‘isto não é conventual porque não tem amêndoa, não tem ponto de açúcar, etc.’ Porque já encontrei mais doces que nasceram em conventos e não seguem essa regra conventual, que é ter muita amêndoa e pontos de açúcar muito altos.”

Os fálgaros da Tabosa, de Sernancelhe, por exemplo — “um doce que não tem explicação, não é só bom, é bonito” — levam imensos ovos e queijo, não levam quase açúcar. “E aquilo saiu de um convento. À primeira vista, nunca diríamos.”

Em suma: gastam-se horas a pesquisar. “É falar com pessoas, é ir a bibliotecas, ler tudo o que está escrito, é pensar, seguir o meu instinto, também. O ‘pito’, no Norte, é o pinto, mas é também a fruta quando está muito madura, diz-se que está com o pito quando está assim naquele estado ‘mais um bocadinho e não se come’. Será que os pitos de Santa Luzia têm aquele nome porque a abóbora que se usa para os fazer já não está em condições para outras coisas?”

Borrachinhos, papudos, sardões, passarinhas, ferramentas de São Gonçalo, o bolo de discos, que a senhora Rosa Maria faz em Arcos de Valdevez, os caladinhos, de Santa Maria da Feira... bem vindo ao mundo dos doces, muitos com nomes curiosos, e suas histórias, relacionadas com lendas, romarias e santos padroeiros, por exemplo. Cristina anda encantada por poder contá-las. E também os prova. Quando está em filmagens chega a visitar três doceiros por dia. A ela o açúcar não engorda, fá-la feliz. “O segredo é beber sempre muita água.”

Cristina na redacção do PÚBLICO na quinta-feira, 19 de Maio rui gaudêncio
Gonçalo Barriga, na cozinha da casa de Cristina Castro, em Lisboa, a fotografar doces para o livro enric vives-rubio
Cristina com Manuela Silva, uma das doceiras da Doçaria Mário, em Amarante paulo pimenta
Cristina ainda bebé na bancada da loja da família, que ficava mesmo por baixo da residência, em Sousela cortesia cristina Ferreira de Castro
Em bebé, Cristina com o pai, António Castro Cortesia Cristina Ferreira de Castro
Desde há um ano e meio que Cristina se dedica a um projecto de investigação e divulgação: um inventário dos doces portugueses paulo pimenta