Portugal não é a Irlanda
A Irlanda definiu um caminho que a colocou num trilho imparável de crescimento económico e não quer correr riscos ao abandoná-lo. Nenhum partido de poder discute esse caminho e a maioria dos irlandeses subscreve sem reservas esse consenso.
A Comissão Europeia quer obrigar a Apple a pagar 13 mil milhões de euros de alegadas dívidas fiscais ao Governo da Irlanda. Bruxelas tem do seu lado a lei, a razão e a moral para exigir que um dos gigantes mundiais da nova economia seja obrigado a devolver à comunidade parte dos extravagantes lucros que acumulou. Mas, espantemo-nos, a Irlanda não quer esse dinheiro. Não quer o Governo, nem os partidos da oposição, nem a esmagadora maioria da sua população. Espantamo-nos porque em causa está, de facto, muito dinheiro. E espantamo-nos mas ainda mais porque somos capazes de antecipar com alguma precisão o que aconteceria em Portugal numa situação dessas. Teríamos a direita radical a lembrar que as benesses fiscais são úteis para atrair investimento estrangeiro; teríamos a esquerda radical a pedir a revolução, a deportação dos capitalistas e, quiçá, a queima organizada de iphones na fogueira; teríamos Passos Coelho e António Costa a dizer que a culpa foi do passado ou do presente. O que não teríamos jamais era aquilo que os irlandeses têm revelado: consenso e partilha de ideias e de princípios mínimos sobre uma estratégia para o país.
Podemos suspeitar que o que move a Irlanda no apoio da absurda política de protecção fiscal à Apple é o medo. Medo que a Apple se irrite com uma eventual cedência à Comissão Europeia. Medo que decida retirar-se do país, deixando um rasto de desemprego e um buraco nas receitas fiscais. Mas há também nesta atitude a ideia de que o privilégio às multinacionais através de regimes fiscais que roçam o escândalo é um trunfo para a viabilidade do país. A Irlanda submeteu-se a um duro programa de ajustamento imposto pela mesma troika que esteve entre nós, teve de se confrontar com cortes profundos nos salários e nas pensões, mas nunca equacionou a possibilidade de subir a sua taxa de IRC, que está nos 12.5%. A Irlanda definiu um caminho que a colocou num trilho imparável de crescimento económico e não quer correr riscos ao abandoná-lo. Nenhum partido de poder discute esse caminho e a maioria dos irlandeses subscreve sem reservas esse consenso. É estúpido, injusto e, aos olhos dos outros europeus, imoral? É, sem dúvida. Mas é consequência de um espírito de união que se expressa na vontade democrática.
Em Portugal estamos a léguas desse empenho em encontrar bases mínimas de entendimento que sustentem políticas ousadas e prolongadas no tempo. O passado só existe quando deixa saudade e o futuro é sempre qualquer coisa que vendedores de banha da cobra como os políticos nos querem impingir. Por cá não há responsabilidade colectiva pelo passado nem vontade colectiva para o futuro. Metade (ou mais) dos portugueses ainda acredita que a Troika e os cortes na Função Pública se resumiram a um capricho do Governo Sócrates ou a um devaneio de Passos Coelho e seus pares. A Suécia fez há anos uma política de reformas e de poupança apoiada pelos principais partidos, a Lituânia sofreu o duríssimo abalo de cortes salariais e de despedimentos no Estado, a Irlanda seguiu um caminho idêntico num admirável espírito de união e todos estes países foram capazes de assumir colectivamente o seu destino. Para muitos de nós, encarar a realidade e aprender com ela é um exercício improvável – ainda ontem José Pacheco Pereira escrevia no PÚBLICO que a necessidade do ajustamento era uma invenção de “argumentos conservadores, destinados a impor às democracias uma noção da história que não depende da vontade e da escolha humana no presente”.
Da mesma forma que a Irlanda se blindou em torno do IRC, o país tem necessidade de se agrupar em torno de medidas urgentes. Sabemos que a sustentabilidade da segurança social é uma bomba ao retardador. Sabemos que o centralismo do Estado é um garrote que anula as dinâmicas regionais, que cria labirintos ineficazes e sem transparência, que alimenta uma clique em torno do poder que instiga a corrupção e o nepotismo. Sabemos que é fundamental reformar o Estado, extinguir serviços e reforçar outros, equilibrar a progressão automática das carreiras com mecanismos para premiar os mais dedicados e competentes. Sabemos que a protecção dos mais pobres, dos idosos, dos desempregados de longa duração com mais de 55 anos exige mais do Estado e da comunidade. Infelizmente, sabemos também que no centro político, o espaço onde há margem para pactos de regime e para consensos mínimos, a inimizade pessoal, o tacticismo, a mentira e a deslealdade de parte a parte tornam essa ambição uma utopia.
Viver num país onde a divergência e o debate vivo de ideias se alinham no conformismo do denominador comum, como é normal na Escandinávia, pode parecer mais aborrecido. Ter no Parlamento um João Galamba, um Carlos Abreu Amorim ou um Telmo Correia não deixa de ter a sua graça. E ter um governo instável e com um raio de reformas de curta distância é bem melhor do que não termos governo nenhum, como na Espanha. Não somos a Irlanda. A permanente barafunda, a dúvida metódica até em relação aos que partilham valores comuns, o prazer do azedume a roçar o ódio agora alimentado pelas redes sociais, o culto da inveja ou a clubite impedem-nos de ter duas ou três ideias inabaláveis sobre o futuro que nos poupem ao derrotismo ou à resignação. Que se lixe, vamos mas é à bola…
2 - A educação é um bom exemplo dessa falta de consensos. Andamos há décadas a fazer e a desfazer currículos, regras de acesso à profissão, sistemas de avaliação de alunos e docentes. A instabilidade tem um custo. Muitos dos problemas da escola pública que conhecemos têm aí a sua origem. Chegámos ao ponto de ter um terço dos professores exaustos, desiludidos, baralhados ou até desesperados. Socialmente desprestigiados, desautorizados nos poderes disciplinares, com as carreiras profissionais congeladas, obrigados a desbaratar tempo nas rotinas burocráticas, os professores estão a ser derrotados pelo sistema. A instabilidade obriga-os a aplicar currículos intermináveis que mudam de ano para ano. A docência continua a ser um charco de águas paradas onde o mérito, o talento, o esforço pouco ou nada contam para a progressão na carreira. A escola é vezes de mais um lugar desolador para os que sentem na pele a extraordinária responsabilidade social da profissão.
Há em Portugal muitos problemas que nos obrigam a ranger os dentes e a esperar que a tempestade passe. Na educação era possível fazer melhor. Isso implicava medidas corajosas. Implicava autonomia, mais poder para disciplinar, menos papéis e um clima de democracia nas escolas que evite a ascensão dos medíocres ou dos traficantes de influência aos cargos de direcção. Bem se sabe que são medidas difíceis, com riscos, que iriam conflituar com os sectores mais conservadores da docência, com os que “dão” aulas como quem carimba papel azul de 35 linhas, com os seus poderosos sindicatos ou com os ideais dos extremos da política nacional que continuam a achar que se o mundo mudou, o problema é do mundo. Mas se não houver entre nós um acordo mínimo sobre o que fazer para a próxima década, estaremos a declinar o compromisso com o futuro.