Há mais de 420 mil pedidos de cidadania portuguesa encalhados no IRN, dizem advogados

Instituto dos Registros e do Notariado mudou, há dois meses, procedimentos para análise dos processos de concessão de nacionalidade lusa. Mas nem a inteligência artificial está agilizando a avaliação.

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As filas de espera em frente à Conservatória de Lisboa são frequentes: processos de pedidos de cidadania portuguesa andam lentamente Nuno Alexandre
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Há pouco mais de dois meses, o Instituto dos Registros e do Notariado (IRN) anunciou mudanças nos sistemas de análise e acompanhamento dos pedidos de cidadania portuguesa. A promessa era de que, com tudo digitalizado e com a ajuda da inteligência artificial (IA), os processos caminhariam a passos mais céleres. O que se vê, no entanto, são problemas estruturais que nem a tecnologia consegue resolver. Falta o essencial para que o serviço do IRN ande: mais pessoal. Sem isso, será difícil desenrolar os mais de 420 mil requerimentos de nacionalidade que estão encalhados, segundo levantamento de duas das mais respeitadas empresas especializadas em imigração: a Start! Be Global e a Martins Castro.

“Por lei, os processos envolvendo pedidos de cidadania deveriam ser equacionados em, no máximo, 90 dias úteis, mas há requisições de março de 2021 ainda em análise na Conservatória de Lisboa”, diz o advogado Renato Martins, da consultoria Martins Castro. “Nem mesmo as prioridades previstas na legislação, os filhos de portugueses menores de idade, estão sendo respeitadas”, acrescenta Flávio Peron, CEO da Start! Be Global. Processos que costumavam levar seis meses para ter um parecer definitivo, agora, se arrastam por um ano. No caso dos filhos maiores de idade, o tempo de análise passou de oito meses para quase dois anos.

Chefe de Operações da Start! Be Global, Ema Oliveira não tem dúvidas: “Os pedidos de cidadania portuguesa se transformaram em uma bola de neve. Nada será resolvido tão cedo, apesar da ajuda da inteligência artificial”. A razão pelo ceticismo é uma só: a tecnologia ajuda no início do processo, todo digital, ao fazer a primeira triagem dos documentos apresentados. Contudo, quando os trabalhos passam a ser executados pelos servidores do IRN, tudo empaca. “Há, hoje, em Portugal inteiro, apenas 232 notários, mas as estimativas apontam que seriam necessários 500 para atender a toda a demanda. Houve concurso público em 2023 para a função, o primeiro depois de mais de 20 anos”, emenda Renato Martins.

Na avaliação dos especialistas, a situação se agravou depois que o Governo criou uma série de facilidades para se requerer a nacionalidade portuguesa. Em 2015, uma alteração na Lei Orgânica reduziu o tempo necessário de residência em Portugal para se obter a cidadania lusa: de seis para cinco anos. Em 2020, houve nova mudança na Lei Orgânica, desta vez, reduzindo os entraves para a concessão de cidadania a descendentes de portugueses, como os netos. Eles não precisavam mais provar ligações afetivas com Portugal e ganharam o direito de conceder a nacionalidade para duas gerações adiante.

“Tudo isso foi feito sem que houvesse preparo na infraestrutura do IRN para atender a demanda que se agigantou”, destaca o advogado Bruno Gutman. “Temos um sistema capenga, em que nem a inteligência artificial dará jeito”, assinala. Para ele, é injusto que as pessoas esperem por tanto tempo para ter acesso a um direito previsto em lei. Há, ainda, um problema dentro do IRN de interpretação da lei, segundo Ema Oliveira. “Dependendo do funcionário que nos atende, as pendências se resolvem mais rapidamente ou surgem novas barreiras”, frisa.

Brasileiros são maioria

Os brasileiros, destacam os especialistas, são de longe os que mais têm pedido a cidadania portuguesa. Levantamento do Ministério da Justiça mostra que, entre 2010 e 2023, foram concedidas mais de 400 mil nacionalidades a brasileiros. Questionado pelo PÚBLICO Brasil sobre números mais atuais, o IRN não se posicionou. Mas é certo que, desde o ano passado, a pressão exercida pelos brasileiros sobre o órgão responsável por avaliar os pedidos de cidadania aumentou. É que o atual fluxo migratório de cidadãos oriundos do Brasil para Portugal se acentuou a partir de 2017. Portanto, a cada ano, milhares de brasileiros completam os cinco anos de residência em território luso exigidos para se requerer o benefício.

Para Flávio Peron, diante dessa realidade migratória para Portugal e das facilidades concedidas pelo Governo, deveria ter havido um preparo das instituições responsáveis pelos pedidos de cidadania portuguesa. De nada adianta ter leis — que são boas — para atrair descendentes de portugueses e mesmo outros estrangeiros, se não forem criadas as condições para que o Estado responda de forma tempestiva às demandas. “Quero crer que os prazos para a resolução dos processos vão diminuir. Com o novo programa do IRN, os advogados sobem diretamente os documentos digitalizados no sistema, processo que, até então, era feito pelos servidores do instituto”, diz.

Enquanto a agilidade ainda está no campo das expetativas, lembra Ema Oliveira, há centenas de milhares de pessoas frustradas pela demora do IRN em cumprir o papel que lhe cabe, conforme a legislação em vigor. O pior, acrescenta Renato Martins, é que, mesmo esperando esse tempo todo, as pessoas não têm garantia de que seus pedidos serão atendidos. “Ou seja, gasta-se tempo e dinheiro e tudo caminha na incerteza”, afirma ele. “Não há o menor cabimento nessa demora toda”, complementa Bruno Gutman.

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