Querida Paris Photo, então hoje o que há para ver?

Há uma data redonda para comemorar, 20 anos, mas nos corredores da maior feira de fotografia do mundo ainda se fala dos ataques terroristas de há um ano. Fizemos um percurso livre e não parámos de bater com o nariz em “duelos” entre géneros e épocas.

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20 avril 1979, Paris, rue Henri Barbusse (1979), de Denis Roche Denis Roche/Cortesia Galerie Le Réverbère
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Portrait #15, South Africa, 2015 (2015), de Pieter Hugo Pieter Hugo/Cortesia Stevenson
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To Wipe the Floor for a Change (1975-76), de Pieter Laurens Mol Pieter Laurens Mol/Cortesia Parrotta Contemporary Art

A memória dos atentados terroristas do ano passado em Paris ainda está fresca. Os ataques aconteceram num momento em que a Paris Photo tinha as portas abertas há dois dias. E a partir daqueles trágicos momentos (130 mortos em três atentados) a cidade entrou em estado de sítio e as portas do Grand Palais, casa da maior feira de fotografia do mundo, não mais abriram. A experiência do que se passou nesses dias de terror paira nas conversas dos participantes e visitantes da feira, que este ano assinala duas décadas. Mas esta efeméride de números redondos parece ter funcionado como um tónico para o regresso à “normalidade”: há corredores cheios de pessoas, negócio, trocas de contactos, muitas conversas e um frenesi à volta da fotografia e do mercado a ela associado. E há nesta edição (que termina este domingo) mais galerias e editoras de livros de fotografia do que na do ano passado (179 expositores em 2015, contra 183 em 2016). Em quatro dias, a organização conta receber cerca de 60 mil visitantes.

O espalhafato com que foram decoradas as paredes da galeria Taka Ishii (Tóquio) logo à entrada das amplas naves do Grand Palais (folhas de alumínio coladas por todo lado, a fazer lembrar o ambiente de celebração permanente da Factory nova-iorquina de Andy Warhol nos anos 60) dá o mote festivo para uma edição que tenta afastar as nuvens negras que a ensombraram há um ano. Lá dentro, há uma mistura entre fotografia vintage do pós-guerra (Eikoh Hosoe, Shomei Tomatsu, Hitoshi Tsukiji...), que nos últimos anos tem sido alvo de sucessivas revisitações, e fotografia de arquitectura (Thomas Demand, Armando Salas Portugal, Yasuhiro Ishimoto...).

Mesmo ao lado, na galeria Stevenson (Cidade do Cabo), Pieter Hugo apresenta um novo trabalho, 1994, um conjunto de retratos de crianças nascidas após esta data. É um ano marcante para dois países do mesmo continente: África do Sul e Ruanda. Para o primeiro porque foi aquele em que se realizaram as primeiras eleições democráticas, depois de 46 anos de apartheid. Para o segundo porque marcou o fim de um genocídio que resultou na morte de um milhão de pessoas. Ao fotógrafo sul-africano – cujo corpo de trabalho lida com a história e as tensões latentes que ela pode deixar plantadas – interessou registar uma geração de crianças que crescem sem o peso do passado e num momento em que têm todas as possibilidades de mudança em aberto. O mundo “refrescante” em que vivem e o “olhar honesto” com que enfrentam as câmaras cativaram Pieter Hugo, que confessa ter tentado fotografá-las “sem sentimentalismos”. Ao envolvê-las na paisagem onde vivem, fora das grandes cidades, o fotógrafo quis lembrar, no entanto, a carga histórica que estes lugares carregam. É uma escolha que tanto serve de alerta para o potencial de falhanço das narrativas de libertação fabricadas em que vive esta geração, como para dar conta da fronteira ténue entre uma paisagem idílica e a memória de acontecimentos terríveis.

Um caldeirão de imagens

Para começar, temos portanto lado a lado uma celebração algo feérica da fotografia (pelo menos na embalagem das paredes da Taka Ishii) e aquilo que simbolicamente pode ser considerado um tempo novo, mas com uma chamada de atenção pelo meio: será possível fugir facilmente (e depressa) do passado, da história dos lugares? 

O duelo entre a serenidade introspectiva das crianças de Pieter Hugo e os reflexos prateados que abraçam as fotografias de alguns dos autores japoneses que trabalharam para a desmaterialização da imagem fotográfica (tornando-a “apenas” movimento, gesto, atitude e experiência) é só um de muitos confrontos fotográficos que se podem encontrar num espaço gigante, que faz convergir as propostas contemporâneas mais vanguardistas e os representantes de toda a (pré-)história do meio. Foi com essa ambição que o holandês Rik Gadella lançou a feira há 20 anos. E não só esse pressuposto continua presente, como se alarga cada vez mais, à medida que vão surgindo novas formas de ver, comprar, produzir e distribuir fotografia: inclusão de galerias de fotografia anónima, crescimento de expositores dedicados ao fotolivro (e criação do prémio Aperture especificamente para esta área), entrada em cena de patrocinadores de marcas de smartphones que conduzirão a uma maior presença da imagética produzida a partir destes dispositivos bem como da sua cultura de partilha e registo (este ano, apenas uma tímida representação de artistas que trabalham com “fotografia digital”).

O confronto (que também pode ser uma forma de diálogo), dizíamos, aparece a cada passo. E não é preciso estar sequer muito atento ou especificamente à sua procura (chega a ser divertido perceber como este mega-ajuntamento de imagens aproxima territórios fotográficos que estão nos antípodas). Ele está nas colecções institucionais, como na exposição do Centre Pompidou que mostra a última década de aquisições, da selfie dos anos 20 de Germaine Krull (1897-1985) ao trabalho sobre a cultura das selfies de Aneta Grzeszykowska (1974). Está na secção Prisma (criada no ano passado para grandes formatos e séries especiais), com as paisagens em assemblage coladas na parede do brasileiro Caio Reisewitz (1967) em frente às paisagens topográficas de lugares de espera de Anthony Hernandez (1947). Ou entre expositores, nas imagens performativas de Pieter Laurens Mol & Clare Strand, da galeria Parrota (Estugarda), e nas fotografias vintage de autores suíços documentando férias na alta montanha, da galeria Artef (Paris). Ou ainda dentro da mesma galeria (Templon, Paris), entre o universo esfusiante e kitsch dos retratos de Pierre et Gilles e as paisagens cinematográficas com pessoas à beira de um ataque de nervos de Gregory Crewdson, onde a melancolia e o tédio são uma constante.

Para além deste confronto (que tem tanto de inevitável como de saudável), a Paris Photo (que parece ter rejuvenescido com a mudança, em 2011, das “catacumbas” do Louvre para os mais luminosos espaços do Grand Palais) mostra-nos também como pôr obras do mesmo filão criativo em diálogo, como acontece na galeria Richard Saltoun (Londres) com The Line (1973), de Liliana Porter (1941), e com work 36, de Helena Almeida, cujo traço desenhado parece viajar das imagens de uma para as de outra.     

Em comparação, em confronto ou em diálogo, é possível, a partir de um caldeirão de imagens como a Paris Photo, uma feira com ingredientes que tentam sobretudo satisfazer os apetites do mercado da arte, vislumbrar, pelo menos, o que é mais procurado no momento actual. Será só uma colherada de uma sopa com sabores mais vastos e complexos, mas que permite “provar” muitas das imagens a que alguém está disposto a atribuir algum tipo de valor. E isto já é mostrar alguma coisa.

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